sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O presente, a cachorra e o menino pit bull


Aqui da varanda do meu apartamento, pela manhã, eu já vi muito menino pit bull passeando com sua cadela pelas areias da praia, da praia da Barra da Tijuca. Mas houve também noites em que eu vi meninos pit bull batendo em outras cachorras, que é como eles chamam as putas, aquelas que fazem ponto nos pontos de ônibus do outro lado da praia, na outra calçada da praia da Barra da Tijuca.
Aqui da varanda da minha insônia eu penso: será que quando ele passeia recolhe a merda que a cadela dele deixa na areia? Será?! Porque se ele pegasse mais na bosta dela, eu sei que ele era outro, tinha mais chance de virar um homem, respeitando o fato de que o mundo vem com bosta e tudo. Mas não. Ele acha que a puta que faz ponto ali suja mais a Barra dele, que ele quer tão asséptica, que a bosta da sua cadela. Por isso, ele anda em bandos, nos coros, aos uivos, gritando pra jogarem pedra nela, pra jogarem bosta nela, na cachorra que é feita pra apanhar e que é boa de cuspir, na maldita puta que dá pra qualquer um, menos pra ele. Maldita, ele diz!
Ontem minha cadela de quinze anos morreu, aqui, nessa mesma varanda. Passei uma semana inteira limpando a bosta líquida que escorria-lhe pelas patas trêmulas. Banhei-lhe o rabo fétido, com água tépida, por mais de sete dias, pra lhe dar algum conforto. Aquele nojo que ia me limpando por dentro. Ela me olhava tão humana. Deixava que eu participasse de sua morte, que foi ali mesmo, na varanda com cheiro de mar. Não precisava, mas deixava mesmo assim. Fazia isso por mim. E eu ali dissolvida, imersa, naquela profusão de fluidos tão mornos, misturados com sangue e fezes, sem saber, eu me paria. A bacia de água morna, com sangue e fezes, a água turva. A bolsa d´água se rompendo e jorrando, escorrendo pelas minhas pernas dela, e a criança nascendo e chorando, ou a cadela morrendo e gritando, com ou sem placenta, com sangue e fezes. Puta-que-o-pariu!
Meu filho viu tudo. Ele já tem dez anos e achei que precisava ver de onde veio.
Na semana seguinte estávamos parados em um sinal e ele viu o carro da frente abrir a janela. Retiravam sacolas com presentes de Natal e davam pra aquela mendiga suja. Aquela que haviam lhe entredito que enfeiava e maculava tanto a paisagem dos cruzamentos das ruas, das ruas da Barra da Tijuca. Mãe, olha só mãe, acho que eles tão dando presentes! Mãe, tô todo emocionado, mãe! Vamos fazer um dia isso mãe? Eu falei pra ele que talvez, que podíamos ver na igreja com o padre Celso se podia ter criança no dia do sopão dos mendigos, aquele que eu nunca fui. Cheguei em casa e pensei que ainda bem que ele não tinha me dado ouvidos quando expliquei que não era bom dar dinheiro em sinal, porque isso era culpa burguesa, que só estimula a marginalidade e a violência, que não adianta nada e blá, blá, blá. Pensei então que talvez alguma coisa ele tenha aprendido vendo a mãe metendo a mão na bosta da cachorra velha que morria. Respirei aliviada, imaginando ele mais velho, transando, quem sabe, com uma daquelas putas, que humanizavam tanto as calçadas daquela que seria a sua Barra da Tijuca.
O meu presente de Natal foi sonhar que meu filho um dia vai contar sobre a noite que passou com uma cachorra pro seu amigo menino pit bull. Aquela noite em que estava só, ou deprimido, desesperado, ou corneado, fodido ou desempregado, mas que foi muito bem amado por uma bendita puta chamada Geni.

Conto inspirado na canção “Geni e o Zepelim”, da Ópera do Malandro de Chico Buarque de Hollanda