segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Fim de banquete: minha calmaria

http://www.youtube.com/watch?v=Vs6HzS2PYz8&feature=youtube_gdata_player 


Os Três Mal-Amados 

J. C. de Melo Neto


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


domingo, 12 de agosto de 2012

OFÍCIO FEMININO

Eu, que sempre me ocupei de vestir as coisas do mundo, com as palavras, me pego confusa se me perguntam: e, então, o que faz você? Respostas compridas, sempre inconclusas. Não é escritora, mãe ou esposa. Nem dona de casa, herdeira de impérios. Nada disso é... Olhando pra trás penso que vejo, a menina tão séria vestindo bonecas. Com nomes, sempre nomes primeiro. Mais tarde a jovem, no espanto do frio anatômico. Mãos vazias de palavras, pra vestir tantas mulheres. Essas sim, pareciam bonecas. Nenhum nome possível pra elas. Só formol, bisturi, ovário, útero, pelve. E então o fracasso, em forma de náusea. Enjôo sem nome. Nudez inominável também! Precisei, então, vestir tudo que via: filhos pequenos, todos os mortos da família... Estranho ofício, ainda sem nome! Só hoje entendi o que faço. De tudo o que vivo, costuro um conto, bordo um poema. Já não deixo mais as coisas perambulando, expiando suas penas, nuas e selvagens por aí. Pois se o verbo no princípio se fez carne, no fim a carne precisa se vestir outra vez. De palavras... E eu, uma costureira, talvez.

sábado, 19 de maio de 2012

Som absoluto






de que matéria serão
feitos alguns silêncios?
o que ali houve então
no entre-dizer,
melodia inaudível
em acorde tão novo,
criado pelas quatro
mãos dos pianistas?

em que dia, em que hora
se tocaram no espaço,
distante e outro,
enlaçadas elas,
qual mãos tateantes
as notas tão belas
se ninguém as ouvia?

não sabem, inocentes,
estranha composição
já acordou as estrelas
unindo a arabesque
às coloridas absides.

e que importa se o silêncio
assim,  para sempre, será?
ou se as vibrações sonoras
irão encontrar
num canto qualquer da matéria
acolhida e abertura
e encarnar o som
de tamanhas alturas?
importa, sim, salvar
o instante perdido,
saturado de agoras,
de um sublime destino
de uma linda história.

o gesto que apresenta
cada um, sem tolices,
sua beleza e glória.
e que importa, por fim,
são muito mais que memória!

se conhecem? sim!
delicada-mente.
tempo que era
prétério imperfeito,
mas que ser(ia)
mais-que-perfeito, ainda além.

olhai, estrelas!
e contemplai o amor,
presença e ausência,
a distância a que brilha!
e a eternidade deleita
e de onde a vista alcança
mas nunca se turva.





Ritmo e ar

Arritmia:
.ar-ri-ti-mia.
vai rir de mim
mas falta ar
no peito um ga-
tinho que mia.

Há risco em vida
mal vivida,
desmedida.

Sem pulso ou ritmo que embale
ou cale a voz que é muda e silencia.

Al-for-ria!
A(h)deus!
Sorria...

domingo, 29 de abril de 2012

pequeno abismo: modos de atravessar





a cada esquina, o pequeno abismo.
da calçada, a beirada. desequilíbrio e vertigem.
o passo, descompassa,
na rota, que entorta a derrota?

ousemos a linha. a beleza. e a lua.
mirando infinito.
uivando melodias.

na travessia,
a reposta nem é se...
nem onde. nem quando.
nem mesmo é resposta...

é filosofia.
é como.
é dança. 

desequilíbrio e vertigem.
doce bá(quico) veneno
salto, anar(quico) e balanço
não alcanço.
só(me) lanço.





pequeno abismo


beira da calçada. pequeno abismo. o passo.
a fé inabalável nos sinais.
respiro. me equilibro.
mas posso o tempo parar?

fecho olhos. abro espírito.
confio e vamos, todos nós.

nada há em beiras de calçada.
a outra margem.
a terceira, é o que há.

e através(cia)
a trave, se há...


pulo, salto.
no escuro.
tenho a alter(idade)
como companhia.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Sobre ver entre ruínas

“A pessoa que não consegue enfrentar a vida – sempre precisa, enquanto viva, de uma mão para a afastar um pouco de seu desespero pelo seu destino… mas com a sua outra mão ela pode anotar o que vê entre as ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal está morto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.” Franz Kafka. Diários. Apontamentos de 19 de outubro de 1921

sábado, 21 de abril de 2012

Filho Poiema



somente um chamamento
de imperiosa urgência
fazer da práxis e da léxis,
o tudo que fui, fiz e falei,
ao vão escuro do tempo,
ao breu das horas,
ao inelutável perecimento sob o firmamento,
uma poiésis,
partejamento
do filho dileto,
feito da carne
das minhas palavras,
que vindo a luz,
rasgando a alma,
em contrações e espasmos
muito próprios,
ritmo e métrica,
o rebento,
o Poiema.

Já não era assim sem tempo
de amparar-te sob um teto,
ao abrigo do tempo,
morada terrena,
a casa,
o livro
de poemas...

No destino da obra,
todo meu suor e entendimento.
Armada de cimento e prumo,
ergo as paredes contra o tempo,
e as intempéries
de minha própria natureza
que me espreitam
e tanto atormentam.

Mas sigo firme,
pois a fenda do absoluto
não se abre assim
a qualquer chamamento.

Estar consciente
deste momento,
a forma a me convocar
ao derradeiro enfrentamento,
o risco, o abismo,
em que somente o Poiema, completo,
satisfaz a voracidade
da travessia,
e do desvelamento.

Obremos, pois!

sexta-feira, 20 de abril de 2012

DECLARAÇÃO DE AMOR (in extremis)


podes prosseguir,
sem que teu corpo se quede para trás

tudo sempre foi
como deveria ter sido

te amar sempre foi
(realizada a promessa cumprida)
simplesmente estar a seu lado

QUANDO UM SUPER-HOMEM CHORA




perto do fim
o gosto é o doce
a cor, azul infinito
o perfume, do leite pingando na boca do filho

nada se perturba ao redor
em meio a silenciosa despedida

tudo é invadido pela mais que espantosa
pax
o coração se expande
na generosidade de aceitar o todo
do mundo

a mulher bela
não é mais causa de dor
nem de envídia
apenas é
e a alma se enternece
no amor à beleza
à forma
à

tudo é como deveria ter sido
e deve voltar a girar
nas voltas do mesmo círculo
eterno-retorno
eternamente

tolo, o homem,
quando ainda imortal
e desconhece liberdades,
o afirmar-se na ponta do abismo

sim, te compreendo,
o absoluto enternecimento
no qual caíste em prantos
aos pés do animal, esbelto e belo,
que junto a ti sucumbia

perto do fim
o amor por tudo aquilo que é vivo

domingo, 1 de abril de 2012

NOITE DESENLUARADA



Caminhei por horas sozinha
à beira do mar,
mas sem ver o céu,
... sem ouvir o mar.

Seguia minhas pegadas
e perdia tanto tempo,
enfestada de dúvidas,
povoada de lamentos.
Acompanhada de más companhias,
tantos e tantos pensamentos.

Não sei bem o que foi, então,
se uma rajada de vento,
e perdi o prumo talvez,
ou , quem sabe, a escuridão da noite,
que se avolumou,
e me clareou por dentro.
Mas o fato é que calei-me
e por muito tempo
fomos só tu e eu.
Eu, arrepio e gozo,
finalmente presença.
E tu, definitiva,
a falta que constitui
o espaço aberto em meu corpo,
lugar justo ao abrigo
da minha alma, em tormento.

Tu, querida amiga
forma bela, esculpida
no seio da linguagem que fala
e trouxemos, juntas, à luz.
Estrela longínqua, para sempre
presença luminosa de uma ausência.

Mãe também e amiga,
que me pariu na carne
das tuas palavras,
que me gerou da carne
das minhas palavras.
Este momento é para ti.
Brindemos nós aqui e ainda
às lindas noites desenluaradas,
em que juntas, contaremos histórias
e vencerermos o tempo
e algumas longas madrugadas.

A GRANDE LUTA



O amor sobrevive quando morre...
e renasce,
mais uma e outra vez,
... diverso, desconhecido, surpeendente,
como minha pele que descama
e amanhã será outra,
deixando antigas roupas pelo caminho.

O amor acaba quando definha...
e desaparece,
sem que ninguém perceba
que já não estava ali.
Amor-mendigo,
amor-velho,
amor-doente.

O amor é luta...
não é para amadores,
mas sim guerreiros,
que arriscam tudo,
que não vacilam.
Os fortes,
que avaçam na frente da batalha,
sangrando a pior ferida.
Os fortes, os nobres, os verazes,
os verdadeiros .
Guerreiros de sangue frio
e coração quente.

Quem quiser que se prepare,
armado de coragem
e sô.
Despido de tudo que sabe,
ouviu, viu, aprendeu.
Nu,
o vento a contrapelo,
e o enorme arrepio,
das noites que precedem e metem medo,
antes de mais um,
e outro dia quente,
ao calor do sol.

O amor é guerra,
tem batalhas,
tem início, meio e fim,
e só termina quando temina a luta.

O amor é glória,
não é paz.

MUDANÇA DE VENTOS



A dó que tenho do barco a deriva e solitário
é grande o bastante pra achar que é forte e belo,
mas nem tanto pra que eu vá com as pernas que são minhas, tão longe que estou, ao encontro de seu destino.
...
O olhar admirado por sua imponência e porte,
é enorme o tanto pra que eu alerdeie seus feitos,
mas não tanto pra que eu embarque, abandone a minha terra agora firma e seja sua capitã ou guia.

A brisa que corre solta e suave em sua proa,
é doce o bastante pra que eu veja que navega macio,
mas não pra mim que dei pra marejar em navios.

O barco é grande e todos o cobiçam,
mucamas, garçons, muitas festas e amigos.

Mas como explicar o súbito desinteresse
pelas vagas bravias.
Como até entender que o turismo
perdeu sua fantasia.

Tardo em admitir,
mas ando gostando,
do pé na areia,
a marola suave,
sem grandes viagens,
sem tanta companhia,
apenas um mergulho
com gosto de sal
um sorriso solto
e uma fácil alegria.

UM CERTO CLIQUE


O mar é infinito
mas já não há olhos para olhá-lo.
O sol de um calor profundo,
... e onde corpos pra desfrutá-lo.
O céu criando bichos tão divertidos,
mas e os sorrisos que já não se abrem?

A paisagem parece igual,
tudo está no mesmo lugar.
Mas nesse teatro
que não se repete,
os atores estavam ausentes.

Até mesmo a objetiva,
que ousou capturar o instante,
se traiu, tão desobjetiva...

Ai, o devir soberano,
que não aprisiona,
nem liberta,
mas roda em círculos,
e para, às vezes,
pra que no impulso,
possamos saltar.

Saltar do enquadramento
é tarefa que parece complicada,
mas talvez seja apenas
esquisita...

Quem sabe se não precisa,
de um pequeno rodopio,
e tonto o fotógrafo,
reenquadre o horizonte
que desconhecia.

Movimento, giro, pulo,
salto, fé, alegria.

NÃO PERECERÁS



“Não sou quadro para viver preso numa moldura e dependurado na parede. E que são as fronteiras de uma cidade, eu pergunto, senão os limites estreitos de uma moldura mais ou menos de luxo, na qual pretendem sufocar a imensidão de minha alma imortal, como diria um grande poeta ou qualquer seminarista, em tarde de primavera?”(Campos de Carvalho – A Lua Vem da Ásia)


Quando alguém desiste de si,
quando alguém se deixar esquecer
na sarjeta do tempo,
num canto qualquer dos dias,
é porque ronda e espreita
a morte do espírito.

É preciso o praticar de algumas horas por dia
o não envelhecer de si de mesmo,
reencantar o quarto escuro da alma,
reinventar um amor possível
por si...

antes que a natureza e seus cipós envolventes
se enredem e seduzam você
a se infiltrar no orgânico do mundo.
porque é preciso que se diga
ao som de trombetas
cirenes, buzinas:

_ O destino do Homem não é natural!!

Seres lançados no tempo,
escrevemos na história o destino moral,
fazendo do mundo
monstruoso teatro inatural,
sondamos o artifícial,
flertando com o imortal.
Somos o espírito
e encarnamos o Humano
que não perece
jamais...

Corpo Novo



liberem meu corpo
liberem meus fluxos
libera geral
... disse o poeta.

gemido do sim,
que se expande...
que se expande.....
que se expande.......

no dia seguinte
acertaram a garrafa na minha janela.
a janela fechada,
a de dentro e a de fora.

tem gente que só ou(viu) estilhaços.
eu não tive tempo,
o líquido jorrava
espesso
grosso
abundante
quente
deixando em curto
aqui dentro tudo

claro, escuro,
claro, escuro, claro, escuro
claro, escuro, claro, escuro, claro, escuro,
pii___________,
piiiiiii__________________,
piiiiiiiiiiiii_________________________,^____^__^^^^^, pi, pi, pi, pi,

^agora^
^eu, você, todo mundo, nós^
^desatando os nós^
^instante^instante^instante^
^luz^

água fluindo
eletri-cidade
curto-agora
curto-gozo
parto luz

chame a enfermeira!!!
não limpe a sujeira
não corte o cordão

eco do som
eric-son
fio de pele
tecido em mim
um corpo, enfim
filho, então.

NOVAS TECNOLOGIAS



máscara digital
mictório virtual
escoem seus fluxos,
líquidos, fluidos
para o meio da rua!

é isso mesmo,
foliões,
a ordem é essa
mijar na rua!

a convergência é sempre
na pólis, política
é capital!

cariocas, reuni-vos!
nosso carnava cultural
nosso bacanal digital
é de bloco ou de rede
mas é folião de rua.