domingo, 4 de dezembro de 2011

QUANDO O TEMPO ENVELHECE DEPRESSA

Ter a embriaguez da grande coragem
de sonhar tanto tempo sobre o dorso do tigre,
rédeas soltas ao vento,
galope nas trevas.

E saber despertar
frente ao hálito quente,
se ferido e raivoso,
num golpe de vista,
o animal te encara
e se detém, bem devagar.

Destrava as travas do tempo
que outrora trancaras com engenho.
E na roda do eterno retorno,
faz-se o tempo da infância da alma,
ainda mais uma e outra vez.

~Karen B.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

AMOR AO POETA DO POVO










O homem que eu amo, ainda,
tem olhos pra abraços ternos
de amigos na beira dos bares,
sorrisos pra praça pública
que é palco de populares,
palavras que não machucam
e brilham com a multidão.


O homem que eu amo, então,
venera as ruas e as gentes,
cultiva as suas histórias,
me abre a cortina do palco
aonde desfila a memória
do que ele aprendeu a chamar
de pátria, povo e nação.


O homem que eu amo, logo
me conta quem passa e quem chega,
me aponta onde os grandes decidem,
me acena onde os poetas brilham,
me explica que lá é assim...


O homem que eu amo, nem
bem sabe o poeta que é,
não os de caneta e tinta,
nem os de jornais e papéis.


Mas poeta, sim!
todo o tempo, pra mim.
Escrevendo imagens nos olhos meus,
tecendo rimas nos ouvidos meus,
me deixando grávida da poesia
e prenhe de vida o desejo meu.


E eu ouço esse homem que eu
ainda, logo e então,
amo, sem quando ou porquê,
mas sei e sinto o como.
Como nunca, digo pra ele.
Como sempre, sussurro pra mim.


A poesia da vida é assim:
onde o amor em passeata chegou
de estandarte empunhado na mão,
no meio do povo, com os pés no chão.


Poema inspirado no livro de poesias "O Povo escreve a História nas paredes", de Mário Lago, no ano do seu centenário.

domingo, 4 de setembro de 2011

Pérolas na rede


















Ando relendo, e também lendo pela primeira vez, Walter Benjamin pelos olhos de Hannah Arendt. No ensaio "Homens em tempos sombrios" Arendt nos fala desse Benjamim que não podemos encontrar em biografias ou relatos históricos, mas somente e unicamente, através dos olhos daqueles com quem conviveu e deixou entrever, nas entrelinhas das falas, nas entrefalas dos gestos, nos entregestos do silêncio, o seu "quem". Esse alguém que somos nós, mais e além do que os olhos podem ver, mas que como um Daimon, que aparece à nossa revelia enquanto falamos, somos e nos movemos entre nossos pares, por detrás de nós, denunciando nosso melhor, nosso pior ou aquilo que em nós é indizível. Tomando contato com esse Benjamin e seus textos sobre a criança colecionadora e as lembranças, me deparei com a forma absolutamente bela com que Arendt descreve o filósofo, como um pescador de pérolas.

Pérolas seriam as cristalizações da memória, lembranças guardadas em algum lugar dentro de nós e que o tempo, às vezes, nos trás com suas marés. Como presentes, verdadeiros tesouros que sempre estiveram lá, mas ocultos e bem guardados para nós. Pérolas, esses fragmentos do tempo, absolutamente cristalizados, que dormiram durante longas eras, mas que com a ação de convulsas tempestades, revolvidos por ondas, tornam a voltar à tona e, lançados em mansas vagas, se espraiam no nosso presente, como um autêntico presente do tempo.

Logo após esse contato comovido com "o quem" da pessoa amiga que foi Arendt e o pescador paciente que foi Benjamin, me encontro chegando ao consultório de minha analista. Me sento com os mesmos gestos que uso há mais de três anos e, pela primeira vez, inauguro com meu olhar essa caixa, uma caixa que pelo que parece sempre estiverá lá, porém escondida pelos véus do presente para mim e, subitamente, desveladas pelo brilho da lembrança. Uma caixa idêntica, em presença, em aparência e significado, a caixa que encontrára há poucos meses na esquecida casa de campo da família, há anos não visitada, herança última de meu pai. Redescubro essa caixinha_na verdade, minha filha_ ali num canto da minha juventude, brilhando por entre uma fresta de armário, atraindo suas delicadas mãozinhas para me entregarem essa pérola. Na caixa haviam coleções de momentos, palavras escriras com a caligrafia da descoberta, que eu e minhas amigas depositávamos com absoluta fé na sagrada fortaleza de uma caixa. Essa crença na sua vocação de perenidade, na força de atravessar o tempo e vencer o seu perecimento, como uma pequena concha enfrenta os vastos e profundos oceanos sombrios. Sim, somos seres que perecem, lançados em nossa temporalidade, seres para a morte, vivendo em tempos igualmente sombrios, mas que através de uma singela e frágil caixinha, resgatada de uma juventude já apagada e rasurada, devastada mesmo pelas tsunamis desse nosso tempo, podem receber um lindo presente da vida. Sim, sim, pois talvez somente através dessas mãos que gerei, herdeira do que em mim é mais vivo, somente através dela, e até por causa dela, recebo de presente a lembrança de que a amizade sempre fora a mais cara virtude. O fraterno sentimento de irmandade por essas mulheres e por essas meninas é o sentimento mais-que-querido, mais ancestral em mim. Sim, sim, agora me lembro da doçura com que admirava e me enternecia com as Irmãs nos colégios de freiras. Recordo, entre ternas lágrimas e límpidos sorrisos, da vocação anunciada ainda pequena criancinha, quando revelei que queria ser freira, mesmo sabendo que não me irmanaria para a leitura das sagradas escrituras.

Então ofereço esse singelo presente, nesse meu tempo em meio a tantas pescarias, algo que me chegou às mãos nessas redes do além-digital, do passado da menina de oito anos que fui, esta pequenina pérola para mim. Penso que não saberia dizer melhor do que a criança de 8 anos que fui, desse sentimento de profunda irmandade e fraternidade pelas amigas que passaram e que ainda estão passando e, a rigor, um sentimento de amizade por toda a humanidade, que me preenche e me implulsiona, no caminho da escrita e do pensamento, pelas estradas das Letras e da Filosofia, mas sobretudo com o norte desse sentimento_a amizade.

É isso, que a amizade seja sempre este presente, um presente, o tempo presente, mesmo que na forma de uma lembrança, um tesouro, uma esperança na humanidade e na eternidade do que em nós deve ser póstumo, o que não tem preço, pois nas palavras de Arendt, como a fama póstuma, não dialoga com o que é mercadoria.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

do amor impossível entre uma gaivota e o sol



O pássaro branco está sempre só.
Nele não resplandecem
as cores do bando,
o azul da celeste arquitetura,
o negrume terrestre,
nem a verdejante mobília vegetal.

O pássaro branco é estranho e estrangeiro
a tudo o que há na terra de mais familiar.
Sem lugar ao sol no colorido ninho,
habita as alturas do que é sub-lunar.
Alvo, claro, irisado e febril,
risca os céus como um cometa a rodopiar.

É alma alada.
Quer seguir seu destino
de voar e habitar
em círculos de luz
e, num ímpeto, se entregar
aos píncaros azuis.

O pássaro branco e seu destino.
sem pincéis de colorir,
sem ninhos a construir,
sem liras pra entoar,
mas apenas desenhar
em seu traçado um voar.

Sua filosófica e invisível escrita de luz,
em sua existência que brilha e reluz,
renúncia pela qual se conduz.
Quem aplaudirá seu bailado
além daquele que, em verdade,
o amar?

Somente aquele que se fez sol
e mergulha tão belo
todos os dias no mar.

Poema inspirado em F. Nietzsche. 'É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante".

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

RASTROS DE UMA PRIMAVERA NO LEME



uma milonga, um lamento
que acorda as sombras da noite
que ainda se amam ao relento.
ah! tempo lento...
mantém acordada a lembrança
no vento pairando em suspenso

e os acordes de um bandoneon
a brincar de bailar e rodar
dentro do coração,
a tocar na emoção
que nem o esquecimento
pôs fim ao delicioso tormento

e então nesse tango eu invento
esse impossível momento
de verdade e maravilhamento
em que eles eles se amaram e dançaram
assim, como sempre fora,
denso, tenso e intenso

ah! o amor é como um raio
assim ouvi naquele tempo
tão verdade como é a milonga do tempo
e as sombras na noite se amando ao relento


Tema inspirado em "Milonga del Angel", de Astor Piazzolla.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Cyclone


Oswald, Oswald meu...
Cyclone tua sou eu.
Mais-que-perfeito cozinheiro de almas,
do alto de tuas potestades
revolves a nós, carne e espírito,
tudo uma só matéria humana,
de tuas gastronômicas alquimias.

E com tuas mãos de deus-artesão
a fazer girar e arder,
em fogo sagrado tuas iguarias.

Nessas nuvens virtuais,
garçonnière digitais,
minh'alma em redemoinhos,
esculpes em mim tua Cyclone,
mãe de ventanias.

Vem, cozinheiro meu,
que em temperos teus,
nos devoraremos,
e nos amaremos,
antropofagica-mente,
em nossas filosóficas artes,
de culinária espiritual,
eros-fagia.

Physis, na clareira que espreita,
nossa hybris eleita e que se deleita,
de incêndios e enchentes,
tempestuosas ventanias.

Apocalypse poético,
o cardápio perfeito
para o banquete da vida.
Luxuriante epifania.

Inspirado no video-documentário "O perfeito cozinheiro das almas", de Oswald de Andrade, veiculado pelo Instituto Moreira Salles no YouTube.

DEVIR-PASSARINHO



O que é hoje,
ainda em mim,
transborda
em amanhãs.

Amor que me excede
e me sucede,
e que agora me pede,
passagem...

Seguir pro além-mim
anunciada viagem,
eloquente miragem
da infinita paisagem.

O ser,
que ora é aí,
ainda
e mais além,
aonde
a vista não alcança,
avista e não se cansa.
Pequena
e grande criança.

E com que boca dizer
este nome não dito
do sentimento mais que bonito
Infinito,
inaudito?

E em que Terra achar
o espaço
pro caminho mais que preciso,
Do que já veio,
mas ainda vem vindo?

O que está
entre o já nascido
e que ainda
vem se parindo.

O que ontem foi grande
no seu nascer,
hoje se faz pequeno
em ensaiar crescer.

Espero e erro
a nascente palavra
que libertará o canto
de pássaro...
que não passará,
pois eu passarei
pela barulhenta passarinhada
e amanhã será,
apenas,
e também,
menino-passarinho

Esculpir palavra


meu nome é desejos
meu endereço são partes
me encontre nos rastros
me beba voragens

o minarete é ponte
a náusea é parte
o verbo é desmedida
a ciência é aragem

perdi-me por ser continente sem fronteiras
fazendo guerra pra dar-me algum império
vou cortar-me na carne das palavras mal-ditas
e esculpir-me na forma possível de me pertenser

o cansaço do tecido que se esgarça
vou cerzir com mãos inabaláveis
o vestido de baile que ainda vai ser meu
a fantasia e a máscara urdidos com arte

não usarei roupa velha ou herdada
não comprarei roupa nova no shopping
vou usar retalhos, pedaços e partes
viradas do avesso, verdadeira face

Um instantâneo de Clarice Lispector


Clarice Lispector costumava dizer que escrevia com a máquina no colo, em um sofá, para estar próxima dos filhos. Deixa-se entrever nesta confissão que entre o imaginário criador e o puro verossímil é o lugar mesmo onde se instaura o ato criativo de Clarice: entre o mundo cotidiano da vida, do real, e o mundo da ficção, que pode ser sem volta. É entre ir e vir que se dá, segundo a própria Clarice, seu ato de criação:

“Pode ser um sofrimento. É perigoso. O ato criador é perigoso porque a gente pode ir e não voltar mais. Por isso eu procuro me cercar na minha vida de pessoas sólidas, concretas; de meus filhos, de uma empregada, de uma senhora que mora comigo e que é muito equilibrada. Para eu poder ir e voltar dentro da literatura sem o perigo de ficar.”

A vida de Clarice penetra e participa da construção de sua obra, assim como, a criação desta obra é parte constitutiva de sua vida. É neste sentido que podemos perceber em Clarice Lispector uma escrita feminina que faz um retrato instigante da mulher que ela mesma é em sua incompletude e que contraditoriamente traz em si o mistério da criação sempre renovada, da gestação de novos seres, nesta busca de entendimento de sua própria verdade. Concordamos com o crítico e amigo de Clarice o poeta Ferreira Gullar quando ele diz que a autora “não quer narrar, contar uma história, porque isso a afasta da experiência essencial, em que se defronta com o mistério da existência. Não obstante, vale-se de histórias, das circunstâncias cotidianas, para chegar ao núcleo enigmático da vida.”

Vida e obra estão, assim, absolutamente entrelaçadas e é a própria Clarice Lispector que nos oferece esta visão, quando se apressa em apresentar-se como culpada - numa culpa original - por não ter realizado a função para a qual teria sido concebida, a de dar a vida em seu próprio nascimento:

" (...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje esta carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se tivessem contado comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu não me perdôo".

Clarice Lispector não pôde salvar sua mãe, e guardou, como vemos nesse depoimento, uma culpa que, segundo ela mesma, levou por toda a vida. Perguntada por um repórter sobre o porquê de sua escrita, do porquê de seu impulso literário, a escritora teria lhe respondido por meio de uma nova interrogação: "-E você?", teria dito ela, "Por que você bebe?". Sua escrita parece ser, nesta perspectiva, fruto de seu respeito a uma necessidade primária, como o beber, o comer e o respirar. Clarice Lispector, portanto, escreve para satisfazer os desejos urgentes de seu ser - aquilo que necessita para se manter viva - exigindo de seu leitor esta mesma atitude de entrega.

A novela Água-viva é das suas obras a que mais exige do leitor, tomado como interlocutor a que se dirige. Entregando-se a improvisação e ao fluir da escrita, movido por jogos se idéias e palavras que arrastam o leitor sem lhe dar tempo para a compreensão do que lê. Objeto Gritante é o título original da obra. Escrito numa época em que a autora também se dedicava intensamente à atividade jornalística, Água-viva foi cortado quase pela metade no número de páginas, pois estava repleto de fragmentos extraídos das crônicas de conteúdo excessivamente biográfico, aonde Clarice misturava sua vida com a ficção.

Em Água-viva há um silêncio expectante entre pergunta e resposta, um pensamento leva a outro pensamento, num moto contínuo de ações articuladas sem premeditação. Por um átimo de segundo, com a ponta dos dedos frágeis, Clarice tenta tocar o início do movimento, a quarta dimensão da palavra, unidos pelo it – material de ligação, síntese protéica, puro real, que liga uma palavra a outra, um silêncio a outro.

“Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas em um caleidoscópio” (p.18)

Podemos, entretanto, reter um instantâneo, deste livro que assemelha-se mesmo a um ensaio fotográfico, coletânea de “instantes-já”, desejo de eternidades. Vemos Clarice, com sua máquina fotográfica ao colo e a imaginamos rodeada por seus filhos. Imagem eloqüente. Silêncio cortante. Objeto gritante. Fotografia que ainda pulsa, respira. Água-viva. Clarice transfigurada em corpo-escrita. “Quero possuir os átomos do tempo”. Em sua escrita em fluxo, como que de mãos dadas aos instantes, quer tornar-se matéria de outra dimensão. “Só no tempo há espaço para mim”. Espaço para ser um objeto gritante que mimetiza a fotografia que tem na memória. A mãe, imóvel, sentada, em meio aos filhos, acometida pela paralisia e pelo mutismo. Clarice se imobiliza para fundir-se ao corpo da mãe, refeito na carne das palavras. Clarice tem culpas e se penitencia. Vive o destino da mãe, sem o saber. Em sua última entrevista ao jornalista Julio Lerner revela que soubera há poucos meses, por intermédio de uma tia, que sua mãe, mesmo paralítica, escrevia, mantinha diários. Clarice certamente sabia, atrás do pensamento.

“O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Que cria outros objetos e a máquina cria todos nós. Ela exige. O mecanismo exige e exige minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.”(p.91)

Para Clarice, escrever e viver são inseparáveis. Não escrever era morrer. “Penso que terei de pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.”(p.70). Ela diz: “cheguei mesmo à conclusão que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.” Vivendo um drama existencial fáustico, vendeu sua alma para escrever. É como Benedito Nunes formulou para ela, “Narro, logo existo”. Clarice jamais separou vida e literatura, da forma que ela compreendia. Criou seus filhos com a máquina de escrever no colo, e escreveu seus livros, na mesma posição. Eis um instantâneo de Clarice Lispector que se desprende de sua Água-viva.


BIBLIOGRAFIA

BORELLI, Olga. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
GURGEL, Gabriela Lírio. A procura da palavra no escuro – uma análise da criação de uma linguagem na obra de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.
LERNER, Julio. Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo: Via Lettera, 2007.
LISPECTOR, Clarice, Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1995.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Enchentes



Lágrimas vertendo rio adentro,
limpando toda a sujeira mal-dita.
Em seu curso caudaloso,
Irrompendo e rompendo,
Diques da palavra represada
na terceira margem anoitecida
na garganta minha.

Comportas, sem portas, trancadas,
Chaves escondidas, sob a mesa?
Há luta ou jogo?
Represas, sou eu caçador ou presa?

Tromba d´água, enchendo a minha cabeça,
E na cabeceira do rio, enchente
de violenta beleza.
Inundei-me das lágrimas violetas,
e sorvi-lhes todas num único gole,
vinho doce, antigo,
Que a vida brinda, ainda
A esse anunciado abrigo.

Incêndios



Céu em chamas e vinho no domingo santo...
e num segundo de descuido, portas abertas,
a grande fome ancestral de ventania,
lambe toda construção com bárbara fúria.

E feito palha, a cidade, o forte e o império,
erguidos sob o frágil solo de feno,
no celeiro, do animal-fera, dormindo seu sono de lebre,
desperta o dragão e seu destino...
de destruir, de consumir, de sucumbir,
de dar passagem...

Sim, o ser-dragão,
leão-alado, fôra guardião,
do bode com cauda de peixe,
cabra montanhesa hibernante.

E dos rios, nascentes, águas frias dos cumes,
de onde submersa busca o oxigênio, sôfrega, das mesmas águas,
pra que se parisse um filho seu
e de Zaratustra ,
que desce das montanhas,
fazendo música,
de seu tropel de cascos afiados...

Seja benvindo, Capricórnio...
já era tempo de tomar seu trono,
seu devir-animal e seu reinado.

Karenina Portugal

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Luna Matter


Umbigo do céu...
Farol que amanheceu
a noite do meu quintal.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Ventanias


O sopro da ventania e seu canto sibilante,
Qual serpente e suas encantarias,
Faz parar o tempo e o vento
Na suspensa areia que tudo revolve,
Deserto em calmaria.

Criaremos tu e eu, em sonhos despertos,
Esculturas de areia no deserto incerto,
Tu és a mão e sopro
Eu, o vento,
E os nossos filhos, canto e poesia.

POEMA FEIO



não vai ser bonito, não
não vai, o poema e os
cacos, estilhaços, espelho
de alice, não,
só foi você quem disse


quem feriu fui eu, fui
não foi a adaga,
o punhal e a noite fria,
era eu, era
tudo eu
o que doeu


o azul, o céu, o escuro
escureceu, quando
refletida e invertida,
fragmento, pedaço, tudo
de horrível e cortante e vil
o aço da palavra, enfurecida,
que fez ferida
era meu
todo meu


o poema, bom e bonito, mais
as palavras, claras e brilhantes, de
fonte límpida, água, diamante, tudo
tudo, tudo
se perdeu


morte, forca, ao
maldito eu
cada-falso, desse
laço, que sem
desembaraço, me desfaço e me
refaço, torpe e vil,
por um ardil, num poema

poema feio, feito tudo
que se viu, que
se serviu e que feriu,
tudo que mentiu,
por um poema, assassinado
assinado

EU.

quinta-feira, 17 de março de 2011

De vocações e chamamentos

Tenho vocação para preces, orações,
contemplações,
recolhimentos.

Quando fiz 5 anos,
disse a meus pais:
"Eu quero é ser freira."

Êxtases místicos já me consumiam,
nas Ave Marias, ao pé da cama da vó,
nas experiências de comunhão
com o absoluto, o incomensurável
com o silêncio, o indizível.

O meu pai ateu, horrorizado,
fez o sinal da Cruz,
3 vezes.

A Minha Mãe, em desconsolo,
jurou me abandonar,
com o padre.

Eu, que sonhava com as freiras, enclausurados do convento,
estremeci
e declinei.

Assediada por fulguracões do Espírito,
tentada a me entregar para ELE....

Oxalá conheci a música
e me entregeuei a escritura.

Só assim sobrevivi.

Em comunhão com o meu espaço e tempo,
contemplei, como fazia em pequena,
a escultura sonora do silêncio,
sua reverberação na minha carne.

Extasiada de transbordamento,
emprestei palavras, cantos e sons
ao inefável, ao indizível.

Hoje compreendo essa vocação,
esse chamamento,
não todo
desvelado.

Nasci para a aventura do pensamento
e, quiçá, das escrituras.
Essa arte do pensamento do SER,
que crie mundos ainda prenhes de
EXistir.

Palavra falada, escritura no espaço,
a esculpir com sonoridades
a carnalidade do verbo
que não encontrava TEMPO
na branca e bidimensional
folha de papel.

Que os bons ventos me tragam
o TEMPO preciso
e impreciso,
pra gestar e parir
a profusão de rebentos
que agora pedem passagem
lugar e nome e certidão de nascimento.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Poeminha pra ninar gente grande


Colchão de montanhas,
edredons nebulosos,
berço de sonhos.

Pra que minha criança,
embalada em poesia,
ainda possa,
muito mais que viver,
amanheser.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Jardim do Éden



Quando acordei e a manhã era sôfrega ainda,
aves em galhardia, com seus gritos cortantes,
gralhando a névoa num céu que os sentidos me entorpecia ,
e irrompendo o véu de uma madrugada tardia,
que de tão lânguida, eu, desfalecia.

Sem forças pra me agarrar a manhã,
que sua mão silente me estendeu,
qual um anjo caído e lançado com mãos de um Deus,
meu corpo quedou e permaneceu.

Num tal jardim do Éden, eu, entre cobras, cipós e serpentes,
me emaranhava em seus apelos e pelos, outrora amantes,
os pássaros com seus cantos suplicantes,
invocatórios, declamatórios de cânticos, sibilantes,
provocando meu corpo, como nunca antes,
a se emaranhar na selva errante.

Que se faça o silêncio,
pois só a mulher escuta
o canto
de um pássaro ferido.