segunda-feira, 29 de outubro de 2007

MISSA DO GALO



“Costumes velhos. Às dez horas da noite
toda gente estava nos quartos;
às dez e meia a casa dormia.”


Machado de Assis


É mais uma noite de sábado. Me enfado. Tudo deve transcorrer como de costume, não sei. Porém ouvi dizer que lá fora muitos estarão juntos na igreja, logo depois da meia noite, na tal missa do galo. Ah! Havia me esquecido, é Natal. Mas é que hoje aqui tudo faz parecer mais um sábado como outro qualquer. Vejo no relógio da sala que já são oito horas. Um trepidar me assusta, ferindo o silêncio da noite. Me estremeço toda. É claro, o escrivão já está na sua hora. Vestiu-se no quarto exalando cheiros e vontades, beijou a esposa na testa e partiu marchando pelo assoalho, pisando seus passos resolutos e ritmados pelos corredores. Esse som que machuca a monótona harmonia da noite. Na sala da frente está o jovem primo. Despediu-se dele hoje mais apressado que de costume, talvez. O silêncio segue seus passos até a rua, ocupando novamente seu espaço. E eu também de novo me enfado. Sinto o jovem pesando sobre a poltrona, ele e seus Três Mosqueteiros de Dumas. A sogra do escrivão veio desejar boa noite e lhe pergunta o que fará com tanto tempo à espera da missa do galo. Procuro o relógio, já são dez horas! O jovem lê.
Agora é a mulher de roupão que vem interromper a leitura! O que será que ela quer? Então o jovem e a mulher ensaiam um estranho bailado de coreografias verdadeiramente insuspeitas para mim. Rascunham uma história que não estava prevista para hoje. Movimentos de avanços e recuos pela sala, pelos móveis, pela noite. Sinto uma zonzeira, me atordôo. A dança que não se completa, as línguas que não se falam. As palavras escritas em letras mínimas, o tamanho possível para a caligrafia da mulher... a miopia do jovem... a história que não pôde ser escrita, cheia de rasuras, papel amassado, jogado num canto do tempo. Será que um dia alguém escreverá? Talvez, em intermináveis escritas e rasuras e reescritas, no sempre das reticências... não sei. Durmo um longa noite sem palavras. Acordo às vezes com uma irremediável insônia afásica.
Mas há noites em que eu gostaria de demolir as paredes que ergueram-se dentro de mim a minha revelia. Sei que são elas que me sustentam, me estruturam, me organizam, me fazem ser o que sou. Mas por vezes me sinto tão dividida, esquadrinhada, esquartejada, sei lá. Tão inutilmente dividida. Mas e se um dia, mesmo que por um breve instante, desconstruisse minhas entranhas e levantasse véus levemente invisíveis, ou talvez divisórias falsamente espelhadas? Talvez o milagre, o encontro possível, por um breve momento, aconteceria. Então a revelação, epifania de alegria, consumiria o espaço, as almas em alforria.
A velha viraria menina, correndo serelepe para o quartinho das escravas. Se amontoava no chão frio junto a seus corpos quentes e escuros, com elas rindo e cantarolando, agora não mais à socapa, até que a grande escuridão enfim se achegasse. A mulher se assustaria admirada, extática como o próprio Jesus Cristo na cruz. É seu reflexo por trás do jovem o que ela agora enfim pode ver. Encantada e surpresa com tamanha beleza, seu corpo e rosto a emoldurarem-se na parede, se avizinhando à Cleópatra e às outras tantas mulheres, todas em festa, escandalosamente santas. E o jovem? Ah! O jovem... desceria do cavalo magro de D’Artagnan e, num vendaval de certezas e coragem, tomaria a mulher arrebatada nos braços, divina comunhão, tanta verdade. Também o jovem vizinho e sua sombra que pairavam pesadas, não mais espreitavam portas, ameaçando nossas vontades. Tramava agora um ardil e pulava a janela da mulher, em toda noite de Teatro. E, por fim, o escrivão, era tomado de uma inveja tão santa frente aquela visão de felicidade. Queria ele para si o que via, o paraíso muito antes da mordida, o encontro muito além do pecado. Tomava seu cavalo também, corria a galope para o Teatro e de lá nunca mais voltava. Jogava fora todas as chaves, deixava a porta da rua destrancada, aberta para todo o sempre... Salve! Amém. E livres, não mais acorrentadas, as escravas corriam pela noite da cidade e da corte adentro. Iriam ver, aprender e entender, em que dava afinal a tal Missa do Galo.
Mas para isso tudo eu precisava da mão de Deus, para me animar e me dotar de vontade, pois sou apenas essa casa, assobradada, abandonada e assombrada, pelas lembranças de tudo que vi, aqui onde fico, na Rua do Senado.

POR UM CREDO LITERÁRIO POSSÍVEL


Creio em um narrador não onisciente, nem tão poderoso assim. Padeço de uma fé comovente nas sagradas escrituras. Por isso rezo toda noite escura da alma pelo encontro com esse narrador que crê na literatura como desvelamento de si mesmo. Um narrador que se perturbe com sua própria criação e acolha a surpresa na sua escritura, dialogue com ela e vivencie na carne de suas palavras o mistério do encontro com sua sombra desconhecida. Que a palavra urdida nesse doloroso ofício-sacrifício seja salvadora, transformadora... revelação. E que ao final de sua criação seu criador se perceba cria de sua própria criatura.

Creio nessa narração que se constrói no momento exato da escrita, pré-lógica, corajosa, contingente. Não que ela prescinda da construção ou se entregue a um automatismo romântico mediúnico, mas que se confronte com sua própria face. Que não seja pecado negar a si mesma mais que três vezes. E que ela deságüe em oceanos desconhecidos, praias desertas, recantos paradisíacos ou, quem sabe, continentes inexplorados. Sim, que a literatura seja a herdeira dessa nossa vocação lusa de navegadores a dedicar suas histórias pessoais a descoberta de terras além mar. Que essa viagem se dobre para dentro e para fora, simultaneamente, ao encontro de símbolos, tradições, culturas, misturas, identidades híbridas e em processo, tudo isso que temos em nós mesmos.

Creio na comunhão com esse narrador, que se depara consigo mesmo, que é leitor de si, durante o processo da escrita. Esse, que não teme contradições, incoerências e desconstruções ao longo de sua narrativa e perpassando seu discurso. Que grata surpresa seria forjar do barro uma personagem e, mais adiante, poder acolher algum ensinamento seu. E o encontro com sua multiplicidade de faces, diante da morte desse seu velho conhecido sujeito, possa alimentar sua boca que fala a língua da alteridade. Que esta fala cresça então mais forte e robusta, para que o outro possa ser sentido como mesmo, carne de sua própria carne.

Creio na escritura como salvação, ritualística e purgadora de todos os demônios do eu.

LITERATURA DE AUTO-AJUDA E O BOOM BIOGRÁFICO


Livros. Falaremos aqui de dois fenômenos editoriais de vendas nas últimas décadas: a literatura de auto-ajuda e o boom biográfico. Entretanto, queremos questionar a premissa de que estamos realmente tratando de livros. Não na qualidade de objetos empíricos e dotados de concretude física, que certamente o são, mas da espécie de matéria espiritual que representam. Passaremos, então, a uma reflexão e uma investigação sobre as formas que se dão estes dois fenômenos sociológicos de consumo no âmbito da cultura de massa.

Fazendo uma apropriação de alguns conceitos da teoria sociológica dos sistemas de Niklas Luhmann que encontram ressonância significativa nos estudos de literatura, como propõe Heidrun Olinto, tentaremos pensar estes dois fenômenos fazendo uma articulação entre os sistemas simbólicos suscitados por estas literaturas e os demais atores sociais acionados neste sistema social em que a literatura circula.

A proposta inicial consiste em inventariar alguns títulos de livros mais recentes e outros conceitos-chaves com que estas literaturas trabalham, numa tentativa de relacionar os campos semânticos em que estes circulam com outros atores sociais empíricos por onde transitam ou são consumidas estas mercadorias, livros a priori. É visível que estamos trabalhando com a categoria do leitor-receptor-consumidor transformado em co-produtor de sentido de uma nova unidade fundante: o texto-contexto.

Uma primeira percepção é a da recorrência de títulos que ora remetem ao universo da ciência, da farmacologia ora ao da magia, do curandeirismo. Temos “Gotas de sabedoria”, “Pílulas de Felicidade”, “Diário de um Mago”, “O Alquimista”. Na estilística há uma recorrência a regras, métodos, leis, que sugerem outras aproximações, desta vez com fórmulas medicinais, receitas de poções, bulas de remédios e leis da física ou da química. Já no segmento das biografias, podemos refletir sobre o caráter evangelizante da literatura. Passando pelas histórias de vidas célebres, há também a história da vida da prostituta Bruna Surfistinha e as inúmeras histórias que contam a vida de santos ou homens “santos” (lamas, gurus, mestres espirituais, etc.). Alguns destes são de alguma forma incensados pela mídia a uma categoria sacralizada. O discurso é muitas vezes o catequético, como sugerem os títulos “Peça e Será Atendido”, “Você e Mais Capaz do Que Pensa” e “O poder do agora”, só para citar a última lista dos dez mais vendidos pelo jornal Folha de São Paulo. Na forma com que uma voz superior se dirige ao leitor, ouvimos o Deus-mercado falando com seu discípulo-consumidor. Em vários destes discursos a mesma doutrina de que o indivíduo pode resolver tudo por si mesmo, com diversas roupagens: “pensamento positivo”, “lei da atração”, “lenda pessoal”. A diversificação e a distinção enfática ds temáticas, servem apenas para organizar e classificar os consumidores, padronizando-os, segundo Adorno em seu ainda atualíssimo ensaio “Indústria Cultural”. Produtos de massa dirigidos a nichos de mercado que aparentemente conferem uma percepção de identidade diferenciada a cada segmento. Há os pseudo-filosóficos, os pseudo-místicos, os pseudo-esportistas, sendo que efetivamente a grande parte destes leitores-consumidores não possuem contato algum com nenhuma destas tradições, quer seja através de seus textos, comunidades ou práticas, mas simplesmente através da facilitação da mídia, que dilui e homogeiniza esses discursos. Efeito curioso é a produção de uma estranha sensação de pertencimento a uma coletividade virtual, esta comunidade de indivíduos unidos virtualmente pela leitura de best sellers, anônimos, se irmanando por esta estranha construção de uma identidade negativa _ leitores-de-auto-ajuda-e-de-biografias-de-celebridades anônimos.

Os templos de consumo vão das tradicionais livrarias, mas sobretudo e, curiosamente, em prateleiras-santuários dispostas em forma de altar, às mega-drogarias, mega-supermercados e lojas de conveniência AM/PM. Estes são os locais de distribuição desta espécie de livros. Talvez possamos refletir melhor sobre em que matéria espiritual se transformaram estes objetos empíricos, se pensarmos largamente na forma com que são consumidos. Curioso pensar que hoje, dificilmente podemos encontrar templos ou espaços sagrados abertos na madrugada, ao contrário do que observávamos em um passado não tão distante, quando o acesso ao curandeiro, ao feiticeiro, ao sacerdote, não conhecia horário comercial. Na madrugada contemporânea, quando os fantasmas dos loucos e dos insones tornam a assombrar, podemos ver este homem caminhando solitário, aprisionado em sua doutrina hiperindividualista. Seu slogan é o make yourself e seu destino, os self-services. Na próxima loja de conveniência ou mega-farmácia AM/PM, o homem pensa encontrar o bálsamo para sua alma.

PERIGOSO MORIBUNDO



ao meu amigo Jorge Albuquerque

Meu amigo, meu amigo, meu amigo, meu amigo...
Já não sei se somos tu e eu loucos
ou se prisioneiros em um campo nazista.
Ou serei eu então criminosa e bandida,
pestilenta, leprosa, perigosa... banida.

Meu crime é, isso sim, essa vil sanidade
de não irromper qual um desvairado,
drogado, pirado, contraventor, infrator,
me insurgir contra a lei que regula a tua morte
naquele lugar que sequer tem um nome
e ao qual eles chamam
economica-mente:
C-T-I.

A sigla repele o afago em teu rosto.
O gesto algemado, assassino perigoso.
A sigla esfria o calor em minhas mãos.
O corpo gelado na câmara de gás.
A sigla proíbe a presença humana.
O corretivo do louco, a camisa de força.
A sigla aprisiona o horário de visita.
O ir e vir do criminoso, impedido.


Queria saber de um disfarce, um ardil,
para ir até ti e quieta,
ali.
Iria buscar a ponta do fio
que mantém você indefeso e preso
às máquinas da tortura infernal,
máquinas da solidão radical.
Que sina impingida aos homens
homens chamados moribundos,
palavra, tabu, feito um crime.
Seguiria a percorrer este fio a cada palmo
em argumentações necessariamente racionalíssimas.
E com os doutores da vida e da morte
desembaraçar-te-ia das teias que te enredam
nos discursos poderosos da ciência e da saúde
que ordenam e coordenam
a tua morte e também
a tua vida.

SALVAR-SE NARRANDO


Queremos aqui sondar a economia dos afetos que se apreende das relações entre o eu narrador que conduz a história e os “outros” personagens do conto Feliz Aniversário, de Clarice Lispector. O quanto este eu narrador conhece das razões e sentimentos dos personagens apresentados? Em que lugar (social, espacial e existencial) ele se coloca dentro do conto? Quais são as saídas existenciais que ele irá apresentar para eles? E em que medida ele se emociona e vivencia a história? Sempre trabalharemos com a idéia de um sujeito narrador que não se confunde com o eu autor, mas é antes e também mais um personagem. Seguiremos também com a suposição da existência de um inconsciente do texto, que poderá ser pecebido na desconstrução dos seus discursos.

Desde o início do conto podemos perceber que o eu narrador já se encontra espacialmente na cena da narrativa_“o marido não veio”_ de certa forma se incluindo na festa, se afirmando como mais um personagem. Ele não nega sua inscrição dentro da composição existencial e social que é apresentada como família. Mas percebemos também que somente até certo momento no conto ele é onisciente, conhecendo as razões e sentimentos de quase todos os personagens que se inscrevem dentro destes laços de família, como veremos adiante. Porém, em determinado momento, justamente através dos personagens que lhe parecem de algum modo enigmáticos e insondáveis, aqueles que não estão aparentemente atados pelos laços de família, o narrador viverá uma revelação, terá um momento de epifania.

Sobre as razões dos personagens, este eu narrador onisciente parece conhecer todas, não reservando muito espaço para movimentos e escolhas existenciais. A maioria não recebe sequer um nome, apenas suas posições referenciais dentro da estrutura familiar através de seus laços de parentesco. São sempre seres “em relação a outros”, jamais eles mesmos. Sobre um dos seis filhos da aniversariante se dirá que mora em Olaria, que mandara a mulher. Quase sem possibilidade de nomeação, ele é “o marido” da nora que mora em Olaria e que “não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos”. Sem nome, sem presença física, ele é apresentado como um covarde, que submete seus filhos e esposa, todavia sem romper com a estrutura familiar (“mas mandara a mulher para que nem todos os laços fossem cortados”). Não merece nenhum afeto por parte do eu narrador, que observa as reações de sua esposa: “mostrar que não precisava de nenhum deles”, “com cara fechada”, “emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posiçaõ de ultrajada”. A nora de Olaria e os filhos do casal surgem com o interdito de não mostrar suas identidades, vistas e sentidas como inadequações. Ela tem um “drapeado que disfarça a barriga sem cinta”, não podendo exibir talvez uma liberdade corporal. As duas meninas, “já de peito nascendo”, não podem vivenciar sua sexulidade, sendo infantilizadas por babados. E o filho menino deve assumir uma postura madura demais para sua tenra idade, sentindo o peso de vestes adultas, acovardado com essa missão imposta pelo pai autoritário que não veio.

Outros membros da família vão sendo apresentados pelo eu narrador sempre da mesma forma: quase sempre sem nomes, incomodados, angustiados, oprimidos, não podendo vivenciar suas identidades e com falas que não parecem autênticas. Ficamos curiosos durante grande parte da narrativa por que motivo a estes personagens não é dada a autonomia para recusar a participação neste teatro que é a festa de aniversário da “velha”, da “mãe”, que também só pode ser nomeada pela vizinha. Observamos que todos estão mobilizados em seus papéis dentro desta encenação de família por uma série de adereços, ornamentos e objetos que, envolvendo este corpo social, aparecem como metáforas dos laços opressores de família: “vestido drapeado”, “babados”, “gravata”, “presilha em torno do pescoço”.

O espaço físico também parece dotado de certa substância viva, numa espécie de delírio alucinatório do eu narrador, onde observamos paredes se apertarem, “cadeiras unidas em fila” aprisionando alguns personagem dentro da encenação, “balões sugados pelo teto”, negando espaço ao escape, “encostara as cadeiras na parede”. Todo o espaço físico cerca a mobilidade existencial dos personagens, que não conseguem desatar-se destes laços familiares demasiadamente apertados. O espaço cênico não apresenta assim nenhuma possibilidade de liberdade a seus atores.

Interessante perceber como a dona da casa prepara este espaço da festa como o cenário de um velório. Cabe a esta filha mais velha, enquanto mulher, a preparação deste ritual religioso. Tudo é preparado de forma laboriosa, pois depois do “expediente”, de “todo seu trabalho”, jaz solitário e silencioso o corpo do defunto, que “desde às duas horas estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia”, já apresentando sinais de rigidez cadavérica, “tesa na sala silenciosa”, a espera dos convidados para esta feliz festa de aniversário-velório. A filha não se esquece de borrifar “com um pouco de água de colônia” a velha, para disfarçar o cheiro da decomposição do seu corpo, “seu cheiro de guardado”. Enquanto isso a defunta-aniversariante, na sua “angústia muda” de se ver velada viva, observa o “vôo de uma mosca em torno do bolo”, seu corpo “branco, imaculado” deitado sobre a mesa-caixão.

O ritual de velório-morte é, contudo, subitamente, transmutado numa espécie de sacramento eucarístico. A velha assassina seu próprio corpo, “deu a talhada com punho de assassina”, o corpo desse Cristo cruxificado pela sua própria família, libertando finalmente seu espírito. A libertação é imediatamente sentida pela nora de Ipanema, que segreda “escandalizada” ou agradavelmente surpeendida”, “um pouco horrorizada”, dizendo: “Que força!” E cada facada no corpo-bolo é a afirmação da vida. Seu corpo “caía em ruínas” e era comido por todos “a cada pazinha”. Mas a aniversariante devorava “seu último bocado”, livre e viva. Eis o mistério da comunhão. O eu narrador comunga agora de todos os sentimentos e pensamentos da velha. Revela, então, que ela desprezava sua família, “oh, o desprezo pela vida que falhava, Como?! Como tendo sido tão forte”. Ela cospe no chão, num gesto de desprezo aos fracos e de elogio a vida, ao amor e a alegria.

Entretanto o eu narrador, em vários momentos, parece desconhecer os sentimentos, as razões e sentimentos da aniversariante. Ela aparece como enigma, ausente, “ninguém poderia adivinhar o que ela pensava”, “a aniversariante era apenas o que parecia ser”, pois “parecia oca” e seus “músculos do rosto não a representam mais”. Neste momento observamos o tabu da velhice, quando os personagens se revelam amedrontados com a possibilidade da morte corporificada na idade avançada da aniversariante.

Mas é exatamente neste momento em que o eu narrador se vê igualmente angustiado pela presença da morte, que ele pede ajuda: E Cordélia? E não a acha, à princípio, porque ela efetivamente não se inscreve neste espaço existencial. Cordélia está “ausente”, “sorrindo”, “suportando sozinha o seu segredo”. Está livre Cordélia, num universo paralelo e “desperta esbaforida”, apenas tangenciando este espaço-prisão por um breve “relance”. Cordélia pertence ao mundo dos vivos. É a “infeliz nora que sem remédio, amava talvez pela última vez”. E neste instante vem a revelação epifânica, “porque a verdade era um relance”, quando a velha com “seu punho mudo e severo sobre a mesa dizia”: “É preciso que se saiba que a vida é curta. Que a vida é curta. Que a vida é curta.”

Enfim, a velha se transfigurara num oráculo para o eu narrador e para Cordélia. “Seu mistério era a morte”. Decifra-me ou te devoro. E Cordélia sobrevivera. Decifrara na “velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante”, abandonando seu marido para viver seu amor, rompendo com violência este laço familiar, “enfim, agarrar a sua verdadeira chance de viver”.

TROPA DE ELITE, TODOS NÓS



Nizia Vilaça em seu ensaio Estética da crueldade e do luxo na comunicação contemporânea, se pergunta se a crueldade e a violência pode estar nas mídias pela estetização da violência. Pensando o recente debate sobre o longa metragem Tropa de Elite, do diretor José Padilha, e as reações acaloradas despertadas em vários segmentos da sociedade, passando pelos debates acadêmicos, salas de aula, cartas de leitores em jornais, até blogs e espaços privados, chama atenção o clima de agressividade e disputa suscitado pelas interpretações sobre o filme (ou pelo filme?). Embates violentos, assumindo posicionamentos autoritários, mesmo quando o que supostamente se diz pretender é discutir o caráter fascista da obra. Será que não estaremos vivendo uma cultura bandida como sublinha Otávio Frias Filho, onde tudo que a sociedade diz abominar é glamourizado no plano da representação simbólica. Então talvez, como propõe Patrícia Mello nos relatos de Acqua toffana, “no Brasil um crime só merece atenção se for uma obra de arte. Queremos os canibais, os perversos, os hiperviolentos, os científicos, queremos os melhores”. Não será, como aponta Luiz Eduardo Soares, no artigo Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência, que a ira individualista vem substituindo a violência heróica das obras clássicas, estas sim representativas de uma reação profunda ao desrespeito da honra pública, através de uma crueldade que se generaliza como elaboração artístico midiática e que encontram seu solo na destruição de valores que não sejam o do capital? Somando-se a estas análises, devemos lembrar também que a abundância do caráter realista, cercado por imagens e simulacros, observado nas recentes produções do cinema nacional, é o retrato desta sociedade hiperindividualista, onde as representações ocuparam o espaço do real. Reduzidos “a um espaço público profundamente conturbado pelos aparelhos tecno-telemáticos e pela nova estrutura do acontecimento e da espectralidade que produzem”, como sugere Derrida, talvez jamais soubemos tão pouco a diferença entre o real e o ficcional. Trilhando este mesmo raciocínio, não poderiam estar deslocados para o espaço das representações simbólicas também o erotismo, a libido e as pulsões em geral? Não seriam então estas as razões do frisson coletivo gerado em torno do personagem e narrador de Tropa de Elite, o Capitão Nascimento, um hiperviolento sedutor, que vem promovendo a fetichização da instituição do BOPE? Exemplos recentes desta operação simbólica são as lingeries e mini fardinhas do BOPE vendidas em sex shops desta nossa cidade, típico fenômeno de merchandising espontâneo. Pensando também os comentários de Benjamim acerca do livro Fleus do Mal de Baudelaire, que compreendendo as razões do tédio dominante na vida moderna, estabelece uma cumplicidade com o leitor (espectador?) hipócrita diante da derrocada dos grandes valores e das grandes esperanças que ainda acalentavam os românticos. Também Bataille associa a violência ao erotismo, denominando de "reino de heterogêneo" aqueles instantes explosivos, de pavor e fascínio, em que desmoronam as categorias que garantem ao sujeito o relacionamento familiar consigo mesmo e com o mundo, segundo as análises de Peixoto Jr em Descentramento e transgresões: a experiência de Bataille, cujo pensamento vale destacar:

"Independentemente de Sade, a excitação sexual do criminoso não escapou aos observadores. Ninguém contudo, antes dele, tinha alcançado o mecanismo geral que associa os reflexos, como a ereção e a ejaculação, à transgressão da lei."
(Bataille, 1987).

Voltando ao filme Tropa de Elite, podemos destacar a estetização de uma violência que possui uma fortíssima carga erótica em cenas que misturam embates entre bandidos e policiais, ao som pulsante de um baile funk com enquadramentos de mulheres dançando suadas e altamente sensuais, junto a bandidos que exibem falicamente suas metralhadoras. É o desejo de voyer do cineasta e do público de participar desta experiência dionisíaca, a qual eles não têm acesso, e que é bruscamente interrompida pela polícia e, logo depois, pelo BOPE, chefiados pelo moralista e perverso Capitão Nascimento. Não é a toa que Birman afirma ser a individualidade perversa caracterizada pelo moralismo, que não obstante seus atos escabrosos, submete-se à moral vigente, freqüentemente de maneira servil, como tão bem podemos observar neste personagem na sua relação com seus superiores na hierarquia policial. O personagem Capitão Nascimento exibe esta virilidade perversa estetizada pelas posturas corporais, suas falas debochadas e autoritárias nas sessões de treinamento-tortura a que são submetidos os aspirantes à instituição, e que podemos encontrar ecoando em vozes da cidade, como: “Você é um fanfarrão 02, um fanfarrão”; “Nunca serão, nunca serão”.
O personagem, assim como o espectador, é também um viciado nas altas cargas de adrenalina que sua atividade proporciona, chegando a viver uma espécie de crise de abstinência, quando vive um impasse frente a condição imposta pela esposa exigindo seu desligamento da instituição, exibindo típicas manifestações de dependência química, encenadas com suores, tremores, explosões verbais violentas, e não apenas um suposto dilema existencial, como sugere o próprio personagem. Sim, o policial e o espectador se parecem também com os mauricinhos drogados, viciados em violência e perversidade. Uma sociedade doente que dificilmente encontrará sua cura estetizando seus desejos de perversidade erótica e voyerismo nas suas representações simbólicas, mas ao contrário, apenas desencadeará mais violência nos discursos assimilados e incorporados pelos espectadores, agora autorizados a reproduzi-los sob a máscara da moralidade e da ordem públicas.

sábado, 20 de outubro de 2007

A PROCURA DA PALAVRA TATUADA


O que é isso??? Pergunta-me com olhar maroto a atriz e dançarina Helena Vieira, logo após a exibição do espetáculo de dança contemporânea Maria José, gravado em vídeo.
Por que ela me pergunta isso, me debato na cadeira, incomodada? Me remexo, meu corpo se inquieta, pede para que eu me insurja. Não tão tímida quanto de costume, inicio minha intervenção no debate. Tenho a sensação de que é meu corpo que me impele, me impulsiona a falar. Indignado, contudo, gostaria mesmo de poder se expressar. Explico que não quero traduzir o espetáculo, que já passei por esse momento, que já me libertei da procura de uma palavra tatuada no corpo da cena. Não responderei a sua pergunta, é isso! Eis apenas o relato da minha vivência.

Procuro em vão, no rosto da artista, alguma expressão traduzível. É um rosto que me fita, me vê, sabe da minha existência. O rosto não se furta ao encontro, mas me nega a palavra que insisto, com mal disfarçada ansiedade e angústia, em pedir. O rosto, a face, uma rocha. De nada adianta tentar extrair a leitura dramática que tento arrancar-lhe. Sua negação é eloqüente. Em lugar de palavras uma revolta que transborda no mutismo da face, impelindo meus olhos na direção do corpo. Começo a perceber a narrativa tatuada no corpo da intérprete. Outra linguagem. Palavras em forma de pele, músculos, ossos, matéria viva. Um texto que reconheço, tal qual uma língua (até bem pouco) morta, grego ou latim.

A impaciência inicial, o imperativo intelectual, racional, cultural para a tradução. O irritante o que é isso, o que é isso, o que é isso... marcado compassadamente pelo timer na minha cabeça... único registro sonoro em cena. Tudo isso vai recuando... cedendo espaço...se calando... É a linguagem do corpo que se impõe. Um eloqüente grito, muitas vozes, ou melhor, muitos corpos, uma passeata de feministas, todas em um só corpo nu, gritam compulsivamente, a cada espasmo muscular, que não estão aqui para serem consumidos, expostos em prateleiras, com embalagens desconfortáveis, em sutis discursos que desapropriam a mulher de seu próprio corpo. Maria José se pertence. Tem como construção sua cada um de seus movimentos, mesmo que de forma ora vacilante, ora dolorosa, beirando o abismo. Um corpo dono do seu tempo e do espaço que ocupa. Não é Maria, não é José, é outra coisa. Maria José não é a soma de Maria e José. Maria José pertence a outro gênero. Sem etiquetas, classificações visíveis, categorias reconhecíveis, um gênero que comunica sua existência inventada de forma inegável, desvelada pelo ato artístico. Ato político também. Eu, público, vivencio múltiplas possibilidades do meu corpo atrofiado, que a artística num ato político torna públicas. Meu corpo sai mais potente da experiência artística. Sinto que ocupou mais espaços e aprendeu uma dezena de palavras que somente ele poderá pronunciar. Aonde? No seu espaço político privado. No seu espaço político público. Desvelamento artístico.

*Prêmio Rumos Dança Itaú Cultural/2007