segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Grande Roda


Que ninguém saiba jamais,
o ter-se a alma perscrutada,
o desejo, um inocente,
o sonho, ainda dormente,
e o presente...
devorado a revelia.

Dói-se, em temor e em tremor,
qual ferida esgarçada,
que sangrando pele adentro,
vertendo invisível tormento,
e a alma em lamento...
congelando em vigília.

Nunca mais o sol,
nunca mais o dia.

Rodopiando e ardendo,
a esmo e ao largo,
a barca e a grande roda,
girando a delirando,
queimando e morrendo,
nas fogueiras da fantasia.

A adaga...
Vem,
que já é tarde.
A lâmina
o espera,
dentro da noite fria.

Karen Cordeiro

Inspirada na canção "O Pastor", de Madredeus.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Minha pequena vendedora de fósforos


A pequena vendedora de fósforos está logo ali, sentada na calçada, olhos cerrados com doçura, sorriso nos lábios, dentro da manhã fria. Achamos ela morta, eu e minha filha. O silêncio. Eu e minha filha. Não esperávamos por aquela triste cena. Eu e minha filha. Com meu sôfrego esquecimento, achei que na página seguinte encontraríamos a pequena vendedora de fósforos sonhando, eu e minha filha.
Com sua virginal fé nas histórias, minha filha estava protegida e segura, na sua natural expectativa de uma redenção. A magia e o encantamento das páginas da sua infância.
- Mamãe, e agora?...
De novo o silêncio. E, dentro do silêncio a pergunta: o que direi a minha filha?
- Triste a história, não é filhinha?
- É, pensei que ir acontecer mais alguma coisa!- refletiu ela, me tirando todas as palavras das mãos.
Acaricio seu rosto com minha mão possível deserta de palavras.
Sinto que ao tocar sua face a transformo no sereno e triste semblante da pequena vendedora de fósforos. Não há mais saída para nós. Meus dedos, seu rosto e a menina bem ali. E também eu e minha filha. Morrera de frio e fome, abandono e solidão, e um não sei mais o que que não conseguimos tocar com nossas únicas mãos. Eu e minha filha. Aquela bruma de invisibilidade sobre a pequena vendedora de fósforos.
- Mamãe, será que ninguém a viu? Será que não viram, mamãe, que ela estava ali, sentada na calçada, paradinha? E os anjinhos, mamãe, e o doutor? A polícia, mamãe, a boa velhinha que devia ter passado, mamãe, o moço bem vestido, feito o papai, né mamãe?
- Minha filhinha, não me pergunta mais nada disso.
Nem sei se agradeço e a abraço contra o tempo, ou se estou me enganando ao deixar a vida alcançá-la com minha cegueira com gosto de nó na garganta. Finjo que protejo seus olhos, mas já sei que ela tudo vê, no silêncio do seu quarto, naquela hora descuidade de mãe, em que a deixei sentir frio, fome e abandono, e maldigo a mim mesma, impotente e humana. As mães não têm esse direito, não me conformo, não têm...
Será então que somente a história deve ser bela? Que o sorriso na boca da pequena vendedora de fósforos é o milagre que precede a morte? Será o encontro com a felicidade, nos derradeiros instantes, aplacados pela promessa cumprida, de reconciliação e benaventurança? Será que está liberta de toda dor, sua alma suspensa sobre o corpo, já consumido por fortes contrações de frio, mais espasmos de dor em seu pequenino estômago, mais pavor e terror diante da dor solitária que não abandona seu pequenino corpo? Será que ela alça um vôo sem peso, em direção a morna e acolhedora luz?
Mas não sei de nada disso. Só sei da vida a verdade deste momento. Eu, aqui e minha filha. Minha fiha e eu, também sua filha. Eu , minha filha e o livro sobre a pequena vendedora de fósforos. Palavras que falam duras, silêncios que confortam. Silêncios que gritam, outras palavras que lhes dão forma. E entre uma palavra e um silêncio, estamos eu e minha filha, a girar e a trocar de lugar, de mãos dadas, até...

*conto infanto-juvenil extraído do livro Lendo com vocês, de Karen Cordeiro.