domingo, 4 de setembro de 2011

Pérolas na rede


















Ando relendo, e também lendo pela primeira vez, Walter Benjamin pelos olhos de Hannah Arendt. No ensaio "Homens em tempos sombrios" Arendt nos fala desse Benjamim que não podemos encontrar em biografias ou relatos históricos, mas somente e unicamente, através dos olhos daqueles com quem conviveu e deixou entrever, nas entrelinhas das falas, nas entrefalas dos gestos, nos entregestos do silêncio, o seu "quem". Esse alguém que somos nós, mais e além do que os olhos podem ver, mas que como um Daimon, que aparece à nossa revelia enquanto falamos, somos e nos movemos entre nossos pares, por detrás de nós, denunciando nosso melhor, nosso pior ou aquilo que em nós é indizível. Tomando contato com esse Benjamin e seus textos sobre a criança colecionadora e as lembranças, me deparei com a forma absolutamente bela com que Arendt descreve o filósofo, como um pescador de pérolas.

Pérolas seriam as cristalizações da memória, lembranças guardadas em algum lugar dentro de nós e que o tempo, às vezes, nos trás com suas marés. Como presentes, verdadeiros tesouros que sempre estiveram lá, mas ocultos e bem guardados para nós. Pérolas, esses fragmentos do tempo, absolutamente cristalizados, que dormiram durante longas eras, mas que com a ação de convulsas tempestades, revolvidos por ondas, tornam a voltar à tona e, lançados em mansas vagas, se espraiam no nosso presente, como um autêntico presente do tempo.

Logo após esse contato comovido com "o quem" da pessoa amiga que foi Arendt e o pescador paciente que foi Benjamin, me encontro chegando ao consultório de minha analista. Me sento com os mesmos gestos que uso há mais de três anos e, pela primeira vez, inauguro com meu olhar essa caixa, uma caixa que pelo que parece sempre estiverá lá, porém escondida pelos véus do presente para mim e, subitamente, desveladas pelo brilho da lembrança. Uma caixa idêntica, em presença, em aparência e significado, a caixa que encontrára há poucos meses na esquecida casa de campo da família, há anos não visitada, herança última de meu pai. Redescubro essa caixinha_na verdade, minha filha_ ali num canto da minha juventude, brilhando por entre uma fresta de armário, atraindo suas delicadas mãozinhas para me entregarem essa pérola. Na caixa haviam coleções de momentos, palavras escriras com a caligrafia da descoberta, que eu e minhas amigas depositávamos com absoluta fé na sagrada fortaleza de uma caixa. Essa crença na sua vocação de perenidade, na força de atravessar o tempo e vencer o seu perecimento, como uma pequena concha enfrenta os vastos e profundos oceanos sombrios. Sim, somos seres que perecem, lançados em nossa temporalidade, seres para a morte, vivendo em tempos igualmente sombrios, mas que através de uma singela e frágil caixinha, resgatada de uma juventude já apagada e rasurada, devastada mesmo pelas tsunamis desse nosso tempo, podem receber um lindo presente da vida. Sim, sim, pois talvez somente através dessas mãos que gerei, herdeira do que em mim é mais vivo, somente através dela, e até por causa dela, recebo de presente a lembrança de que a amizade sempre fora a mais cara virtude. O fraterno sentimento de irmandade por essas mulheres e por essas meninas é o sentimento mais-que-querido, mais ancestral em mim. Sim, sim, agora me lembro da doçura com que admirava e me enternecia com as Irmãs nos colégios de freiras. Recordo, entre ternas lágrimas e límpidos sorrisos, da vocação anunciada ainda pequena criancinha, quando revelei que queria ser freira, mesmo sabendo que não me irmanaria para a leitura das sagradas escrituras.

Então ofereço esse singelo presente, nesse meu tempo em meio a tantas pescarias, algo que me chegou às mãos nessas redes do além-digital, do passado da menina de oito anos que fui, esta pequenina pérola para mim. Penso que não saberia dizer melhor do que a criança de 8 anos que fui, desse sentimento de profunda irmandade e fraternidade pelas amigas que passaram e que ainda estão passando e, a rigor, um sentimento de amizade por toda a humanidade, que me preenche e me implulsiona, no caminho da escrita e do pensamento, pelas estradas das Letras e da Filosofia, mas sobretudo com o norte desse sentimento_a amizade.

É isso, que a amizade seja sempre este presente, um presente, o tempo presente, mesmo que na forma de uma lembrança, um tesouro, uma esperança na humanidade e na eternidade do que em nós deve ser póstumo, o que não tem preço, pois nas palavras de Arendt, como a fama póstuma, não dialoga com o que é mercadoria.