quinta-feira, 3 de abril de 2008

Memórias de uma pequena leitora


Voo...ooo...vô!!! Do parapeito da janela, sentada no abraço da avó, exclamou soluçando, qual um vira-lata abanando a cauda em sorrisos, sua palavra primeira... vovô. E foi com tamanho encantamento que pisou no reino das palavras, que sempre todo mundo recontava a história para ela. Pedia depois disso sempre ao avô que lhe desse a mão, ele que seria seu mestre e mentor. E também que lhe guiasse nesta aventura, que lhe lançasse para o alto com suas mãos de ventania e se pusessem os dois a galopar em seu cavalo branco (porque pra ela ele já era um príncipe, com aquela farda branca e as medalhas que os olhos da avó lhe salpicavam no peito, tal qual estrelas muito brilhantes)... cavalo branco, nuvens brancas, folha branca....e foi numa tarde dessas, igualmente bem branca, da infância que vem mesmo na lembrança com esta mesma cor, que irrompiam também daquele seu amor primeiro, a primeira poética melodia. Era o avô que ali estava, não sei em que tempo, não sei em que dia, mas era mesmo um dia como todos os outros e ....de repente, com uma voz galante e o olhar pleno da beleza dos que poetam, declamava para ela os versos primeiros, com os mineiros olhos comovidos como o diabo, de Castro Alves e de Gonçalves Dias. É certo também que ela não se lembra de um só verso, nem se quer de uma só história, pois de certo também não as compreendia, mas a menina aprendia naquele mesmo dia que com palavras também se fazia melodia. Seu nome era Maria.
Maria tinha também uma amiga distante. Na cidade de São Paulo, morava a pobre Tininha, morava com seus pais, mas estava sempre sozinha. Somente se reencontravam nas férias, quando ela e os pais voltavam para o Rio. Pois bem, Tininha era muito, muito triste mesmo, sozinha na estranha cidade sem vila, sem sol e sem avós. Ela lhe contava que tinha apenas uns poucos amiguinhos, mas eles viviam trancados dentro de um livro e Tininha só os reencontrava, quando sua mãe tinha um tempinho para ler ....ah! ela havia lhe contado que sua mãe estava lhe ensinando a ler, neste livro com cores lindas, e personagens de nomes que soavam-lhe estranhamente gostosos de pronunciar, como TA-LI-TA, era assim mesmo, tudo dividinho, em sílabas, que ela disse que aprendia. Sua mãe havia sido professorinha, acho que ainda sabia ser, mas ia cada vez pra mais looooooonge de Tininhaaaaaaaaaaa...
Maria queria muito ensinar Tininha as coisas lindas que aprendia com os avós, para ver se ela voltava menos triste pra São Paulo. Então, pedia que seu avô montasse no seu violão e ficavam abraçadinhas as duas, quietinhas ali, com pose de para-sempre, pra ver se aprendiam as histórias que contavam as melodias. As mãos de ventania do avô também galopavam velozes no cavalo baio de seu violão, nas modinhas e musicas juninas. E as duas então já conheciam tanto jeito da palavra ser, da palavra viver, da palavra dançar... que Tininha partia cada período de férias mais confiante nas palavras amigas. Aprendeu que podia escrever e também criar seus próprios amigos. Talvez porque estivesse sempre só, resolveu escrever para os parentes que haviam partido pro lado de lá, pois afinal eles haveriam de estar sós também. Escrevia para a cadelinha Mimosa, para o pai de seu pai, o avô, coitadinho, que tinha morrido pouco antes dela nascer, e também para um priminho de cinco anos, que partiu no ano em que ela nascia. Sentia uma estranha proximidade com eles, como se as folhas brancas fossem portais para o mundo-dos-parentes-que-certamente-seriam-seus-amigos-se-fossem-vivos. É por isso, talvez, que não tinha medo de fantasmas ou vampiros, e adorava que lhe contassem histórias fantásticas. Sua mãe era especialista nisso. Daqueles tempos se recorda com requintes de pavor os “contos de fadas” que ela lhe contava na hora de dormir. Onde já se viu Tininha, sua mãe tem cada uma. Meus avós só me contam histórias lindas. Mas o que Maria não sabia é que a mãe de Tininha tinha uma estranha mania de contar histórias de madrastas, talvez pra que Tininha tivesse medo de perdê-la, quem sabe, e fosse uma menina muito boazinha. Pois Tininha cresceu medrosa, lembrando de Rapunzel com suas tranças imensas, presa no alto da torre e da menina enterrada viva, que implorava “não me corte meus cabelos, pelo figo da figueira, a madrasta me enterrou, pelos figos da figueira”. Então Tininha aceitou seu destino. Cultivava suas longas madeixas, aguardando por seu triste destino.
Mas Tininha não tardou e encontrou outra grande amiga na cidade sombria. Seu nome, Catarina. Catarina também era uma menina solitária, mas ao contrário de Tininha, que se impressionava ou temia o universo familiar, Catarina era encantada pelo mundo. A escola era seu país. Mesmo quietinha, ouvia tudo como quem come palavras, sorvendo tudo que aprendia. Era conhecida na escola como a menina-da-redação, pois escrevera aos 7 anos um estranho conto sobre seres fantásticos, que habitavam outros mundos, que possuíam outros sentidos, conheciam outras cores... ah! Isso Catarina aprendeu com o Ziraldo, quando leu o livro Flicts... pela primeira vez alguém lhe falava sobre os outros mundos sobre os quais Catarina já escrevia. Aquelas páginas das quais alegres cores saltitavam, e desenhos mais vivos ainda tagarelavam, tinham uma textura estranha, tão lisas, barulhentas, tão escorregadias, que quase Catarina não dava conta de conter, as páginas pareciam que tinham vida própria. Talvez fosse mesmo a alma de Flicts, difícil de definir, de segurar, de explicar... mas estranha e extraordinariamente fascinante, pensava ela. Depois do Ziraldo, Catarina nunca mais foi a mesma e continuou lendo livros sobre outros planetas, outras galáxias, outros seres, até mesmo os minúsculos e invisíveis. Daí que quando Catarina fez 13 anos descobriu na estante do seu pai tudo que o Ziraldo falava. Desta vez quem contou foi o Isaac Assimov, com livros de ficção científica e o código genético, um universo invisível pra longe do seu planeta e também pra dentro das suas células, afinal o pra-dentro era também infinito! Tininha ficou sabendo, muitos anos mais tarde, que pra poder se encontrar com o Flicts que morava dentro do universo do DNA, Catarina entrou até pra faculdade de Medicina com 16 anos, veja só se isso é permitido? Mas infelizmente depois de três anos se desencantou, não havia nenhuma pista de Flicts e também ninguém lá tinha vontade de lhe dar as respostas que tanto queria. Tininha nunca mais ouviu falar da amiga.
Mas voltando a infância de Tininha, pois bem, um dia ela voltou para o Rio, para Maria, a casa da vila, os avós de Maria, as músicas, as cantigas, os versos, e todo aquele mundo sem torre, sem criança-enterrada-viva, sem solidão, sem maus encantamentos, que até se esqueceu dos cabelos que lhe pesavam a alma, dos pesadelos e dos outros mundos de Catarina, que também lhe pareciam muito tristes. Tininha passou a visitar a biblioteca da mãe de Maria. Ela devia ser uma mulher cheia de beleza, pois todos os seus livros eram de poesia, e a poesia é a beleza mais pura, não é? Conheceu o Casemiro de Abreu, o Álvares de Azevedo e resolveu achar que sua tristeza vinha de um amor que ela não conhecia. Não adiantava, mas parecia que Tininha tinha mesmo vocação para a tristeza, e por mais que Maria implicasse com ela, chamando-a de mal-do-século, e mostrando que nas músicas brasileiras, haviam lindas histórias de felicidade e alegria... pois não adiantava, Tininha resolveu mesmo escrever como os seus poetas ultra-românticos, tardando dia e noite nas suas tristes poesias de amor não correspondido. As duas se separaram e ficaram muito tempo sem se ver. Foi só bem mais tarde, por meio de outra amiga, que reataram a amizade antiga.
Quando tinha 14 anos, Tininha conheceu uma amiga que iria mudar sua vida para sempre. Andréa era seu nome. É que Andréa se aboletou na sua vida. Sabe aquelas amizades que não deixam nenhum espacinho pra tristeza? Pois é. Andréa estava lá de manhã, estava lá de tarde, de noite, todo dia. Mas o fato é que Andréa também não veio só. Ela trouxe na bagagem uma mochila cheia de livros, que pareciam até ter se esparramado de uma só vez no quarto de Tininha. Prestem atenção: Andréa lhe apresentou CLARIIIIIICE!!!

...

É pra ficar em silêncio mesmo. Porque Clarice Lispector foi na vida de Tininha um grande susto. Como alguém podia conhecer o fluxo de seus pensamentos, seus silêncios, seus espantos com as palavras, sua maneira circular de prensar, de sentir, de escrever? Como alguém podia escrever como quem está no exato instante do pensamento? Pois assim eram os encontros de Tininha com Clarice, intensos, apaixonados, amorosos, libidinosos, reais, dialógicos, com pergunta e resposta e silêncio e espanto e tudo isso juntas. Clarice soltou as comportas do pensamento de Tininha. Tininha tinha seu próprio “Livro dos Prazeres”, ficava dias imersa em “Água Viva”, voltava e tornava a voltar e recomeçar os livros pelo fim e voltar ao meio de novo até ter se tornado a mesma substância líquida e viva que era Clarice.
Então, foi mesmo depois de Clarice, e de tooooodos os seus livros, que uma amiga apresentava outra e mais outra e ainda outra e essa turma toda acabou se reencontrando ao longo da vida, pois uma conhecia a outra, que a fazia lembrar de outra, e daí se falavam com quem não viam a muito tempo... e até hoje, todas são grandes amigas. Às vezes saem todas juntas, outras relembram de histórias antigas quando estão fazendo novas amizades e acho que essa mania de se reencontrar nas leituras que passam pelas suas vidas é o que elas têm de mais gostoso e o que faz mais sentido pra essa mulheres, meninas.

FIM
... ou melhor,
O COMEÇO.

*conto infanto-juvenil extraído do livro Lendo com vocês, de Karen Cordeiro.

Em Liberdade


O ensaísta e ficcionista Silviano Santiago, em recente mesa de debates na Festa Literária Internacional de Paraty (2007), destaca o caráter testemunhal do romance Em Liberdade, um diário ficcional onde narra as memórias inventadas do escritor Graciliano Ramos. Silviano fala da sua necessidade, enquanto leitor e intelectual, de dar forma ao caos de tantas leituras. Para isso, o recuo estratégico de Em Liberdade ao passado funciona como um recurso eficaz para ampliar a repercussão do seu testemunho da história recente do país. A ficção biográfica é usada como espaço privilegiado para romper talvez com a maior prisão do escritor, seja ele repórter, ensaísta, ficcionista ou biógrafo, que é o cárcere dos gêneros, já que, segundo conclui Silviano no debate, o mais importante para o escritor seria a liberdade, trazendo a luz nesta fala uma das significações do título do romance, Em liberdade quanto à forma, quanto aos gêneros, diário, ensaio, ficção_ documento, história e arte.
Wander Melo Miranda em Corpos Escritos, ressalta a importância da apreensão dos mecanismos da repressão sócio-política assim como a lucidez no trato com a linguagem que denunciam exatamente estes mecanismos. “Arte, vida e história conjugadas revelam então a outra cena encoberta pela retórica oficial e pelos mecanismos de dominação que mantém o escritor presos ao cárcere do eu”, que dificultam o encontro e diálogo solidário e necessário entre os intelectuais, negando a eles sua participação de agentes nas transformações culturais e políticas do seu tempo.
A autobiografia ficcional assume assim o caráter de memórias agora não mais da experiência da prisão, como nas Memórias do Cárcere, mas sim da liberdade e seus cerceamentos mais sutis, como analisa Flora SüsseKind em Literatura e Vida Literária. Eis o projeto do livro de Silviano: cotrariar a expectativa de um leitor sequioso pela tortura convertida em espetáculo, como em tantas biografias que sucederam os períodos de ditadura militar, nas décadas de 70 e 80. O autor rompe com o pacto autobiográfico, sugerindo que o memorialismo e a autobiografia não são o único refúgio do narrador, mas num inesperado ponto de interseção entre ensaio e ficção. Como conclui Wander Miranda é “esse investimento desalienante da leitura que delega ao leitor a função subversora de investigador da história e em história” revelando que o desejo de historicização da escrita transpõe os limites da produção e penetram na área da recepção.