quarta-feira, 24 de agosto de 2011

do amor impossível entre uma gaivota e o sol



O pássaro branco está sempre só.
Nele não resplandecem
as cores do bando,
o azul da celeste arquitetura,
o negrume terrestre,
nem a verdejante mobília vegetal.

O pássaro branco é estranho e estrangeiro
a tudo o que há na terra de mais familiar.
Sem lugar ao sol no colorido ninho,
habita as alturas do que é sub-lunar.
Alvo, claro, irisado e febril,
risca os céus como um cometa a rodopiar.

É alma alada.
Quer seguir seu destino
de voar e habitar
em círculos de luz
e, num ímpeto, se entregar
aos píncaros azuis.

O pássaro branco e seu destino.
sem pincéis de colorir,
sem ninhos a construir,
sem liras pra entoar,
mas apenas desenhar
em seu traçado um voar.

Sua filosófica e invisível escrita de luz,
em sua existência que brilha e reluz,
renúncia pela qual se conduz.
Quem aplaudirá seu bailado
além daquele que, em verdade,
o amar?

Somente aquele que se fez sol
e mergulha tão belo
todos os dias no mar.

Poema inspirado em F. Nietzsche. 'É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante".

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

RASTROS DE UMA PRIMAVERA NO LEME



uma milonga, um lamento
que acorda as sombras da noite
que ainda se amam ao relento.
ah! tempo lento...
mantém acordada a lembrança
no vento pairando em suspenso

e os acordes de um bandoneon
a brincar de bailar e rodar
dentro do coração,
a tocar na emoção
que nem o esquecimento
pôs fim ao delicioso tormento

e então nesse tango eu invento
esse impossível momento
de verdade e maravilhamento
em que eles eles se amaram e dançaram
assim, como sempre fora,
denso, tenso e intenso

ah! o amor é como um raio
assim ouvi naquele tempo
tão verdade como é a milonga do tempo
e as sombras na noite se amando ao relento


Tema inspirado em "Milonga del Angel", de Astor Piazzolla.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Cyclone


Oswald, Oswald meu...
Cyclone tua sou eu.
Mais-que-perfeito cozinheiro de almas,
do alto de tuas potestades
revolves a nós, carne e espírito,
tudo uma só matéria humana,
de tuas gastronômicas alquimias.

E com tuas mãos de deus-artesão
a fazer girar e arder,
em fogo sagrado tuas iguarias.

Nessas nuvens virtuais,
garçonnière digitais,
minh'alma em redemoinhos,
esculpes em mim tua Cyclone,
mãe de ventanias.

Vem, cozinheiro meu,
que em temperos teus,
nos devoraremos,
e nos amaremos,
antropofagica-mente,
em nossas filosóficas artes,
de culinária espiritual,
eros-fagia.

Physis, na clareira que espreita,
nossa hybris eleita e que se deleita,
de incêndios e enchentes,
tempestuosas ventanias.

Apocalypse poético,
o cardápio perfeito
para o banquete da vida.
Luxuriante epifania.

Inspirado no video-documentário "O perfeito cozinheiro das almas", de Oswald de Andrade, veiculado pelo Instituto Moreira Salles no YouTube.

DEVIR-PASSARINHO



O que é hoje,
ainda em mim,
transborda
em amanhãs.

Amor que me excede
e me sucede,
e que agora me pede,
passagem...

Seguir pro além-mim
anunciada viagem,
eloquente miragem
da infinita paisagem.

O ser,
que ora é aí,
ainda
e mais além,
aonde
a vista não alcança,
avista e não se cansa.
Pequena
e grande criança.

E com que boca dizer
este nome não dito
do sentimento mais que bonito
Infinito,
inaudito?

E em que Terra achar
o espaço
pro caminho mais que preciso,
Do que já veio,
mas ainda vem vindo?

O que está
entre o já nascido
e que ainda
vem se parindo.

O que ontem foi grande
no seu nascer,
hoje se faz pequeno
em ensaiar crescer.

Espero e erro
a nascente palavra
que libertará o canto
de pássaro...
que não passará,
pois eu passarei
pela barulhenta passarinhada
e amanhã será,
apenas,
e também,
menino-passarinho

Esculpir palavra


meu nome é desejos
meu endereço são partes
me encontre nos rastros
me beba voragens

o minarete é ponte
a náusea é parte
o verbo é desmedida
a ciência é aragem

perdi-me por ser continente sem fronteiras
fazendo guerra pra dar-me algum império
vou cortar-me na carne das palavras mal-ditas
e esculpir-me na forma possível de me pertenser

o cansaço do tecido que se esgarça
vou cerzir com mãos inabaláveis
o vestido de baile que ainda vai ser meu
a fantasia e a máscara urdidos com arte

não usarei roupa velha ou herdada
não comprarei roupa nova no shopping
vou usar retalhos, pedaços e partes
viradas do avesso, verdadeira face

Um instantâneo de Clarice Lispector


Clarice Lispector costumava dizer que escrevia com a máquina no colo, em um sofá, para estar próxima dos filhos. Deixa-se entrever nesta confissão que entre o imaginário criador e o puro verossímil é o lugar mesmo onde se instaura o ato criativo de Clarice: entre o mundo cotidiano da vida, do real, e o mundo da ficção, que pode ser sem volta. É entre ir e vir que se dá, segundo a própria Clarice, seu ato de criação:

“Pode ser um sofrimento. É perigoso. O ato criador é perigoso porque a gente pode ir e não voltar mais. Por isso eu procuro me cercar na minha vida de pessoas sólidas, concretas; de meus filhos, de uma empregada, de uma senhora que mora comigo e que é muito equilibrada. Para eu poder ir e voltar dentro da literatura sem o perigo de ficar.”

A vida de Clarice penetra e participa da construção de sua obra, assim como, a criação desta obra é parte constitutiva de sua vida. É neste sentido que podemos perceber em Clarice Lispector uma escrita feminina que faz um retrato instigante da mulher que ela mesma é em sua incompletude e que contraditoriamente traz em si o mistério da criação sempre renovada, da gestação de novos seres, nesta busca de entendimento de sua própria verdade. Concordamos com o crítico e amigo de Clarice o poeta Ferreira Gullar quando ele diz que a autora “não quer narrar, contar uma história, porque isso a afasta da experiência essencial, em que se defronta com o mistério da existência. Não obstante, vale-se de histórias, das circunstâncias cotidianas, para chegar ao núcleo enigmático da vida.”

Vida e obra estão, assim, absolutamente entrelaçadas e é a própria Clarice Lispector que nos oferece esta visão, quando se apressa em apresentar-se como culpada - numa culpa original - por não ter realizado a função para a qual teria sido concebida, a de dar a vida em seu próprio nascimento:

" (...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje esta carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se tivessem contado comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu não me perdôo".

Clarice Lispector não pôde salvar sua mãe, e guardou, como vemos nesse depoimento, uma culpa que, segundo ela mesma, levou por toda a vida. Perguntada por um repórter sobre o porquê de sua escrita, do porquê de seu impulso literário, a escritora teria lhe respondido por meio de uma nova interrogação: "-E você?", teria dito ela, "Por que você bebe?". Sua escrita parece ser, nesta perspectiva, fruto de seu respeito a uma necessidade primária, como o beber, o comer e o respirar. Clarice Lispector, portanto, escreve para satisfazer os desejos urgentes de seu ser - aquilo que necessita para se manter viva - exigindo de seu leitor esta mesma atitude de entrega.

A novela Água-viva é das suas obras a que mais exige do leitor, tomado como interlocutor a que se dirige. Entregando-se a improvisação e ao fluir da escrita, movido por jogos se idéias e palavras que arrastam o leitor sem lhe dar tempo para a compreensão do que lê. Objeto Gritante é o título original da obra. Escrito numa época em que a autora também se dedicava intensamente à atividade jornalística, Água-viva foi cortado quase pela metade no número de páginas, pois estava repleto de fragmentos extraídos das crônicas de conteúdo excessivamente biográfico, aonde Clarice misturava sua vida com a ficção.

Em Água-viva há um silêncio expectante entre pergunta e resposta, um pensamento leva a outro pensamento, num moto contínuo de ações articuladas sem premeditação. Por um átimo de segundo, com a ponta dos dedos frágeis, Clarice tenta tocar o início do movimento, a quarta dimensão da palavra, unidos pelo it – material de ligação, síntese protéica, puro real, que liga uma palavra a outra, um silêncio a outro.

“Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas em um caleidoscópio” (p.18)

Podemos, entretanto, reter um instantâneo, deste livro que assemelha-se mesmo a um ensaio fotográfico, coletânea de “instantes-já”, desejo de eternidades. Vemos Clarice, com sua máquina fotográfica ao colo e a imaginamos rodeada por seus filhos. Imagem eloqüente. Silêncio cortante. Objeto gritante. Fotografia que ainda pulsa, respira. Água-viva. Clarice transfigurada em corpo-escrita. “Quero possuir os átomos do tempo”. Em sua escrita em fluxo, como que de mãos dadas aos instantes, quer tornar-se matéria de outra dimensão. “Só no tempo há espaço para mim”. Espaço para ser um objeto gritante que mimetiza a fotografia que tem na memória. A mãe, imóvel, sentada, em meio aos filhos, acometida pela paralisia e pelo mutismo. Clarice se imobiliza para fundir-se ao corpo da mãe, refeito na carne das palavras. Clarice tem culpas e se penitencia. Vive o destino da mãe, sem o saber. Em sua última entrevista ao jornalista Julio Lerner revela que soubera há poucos meses, por intermédio de uma tia, que sua mãe, mesmo paralítica, escrevia, mantinha diários. Clarice certamente sabia, atrás do pensamento.

“O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Que cria outros objetos e a máquina cria todos nós. Ela exige. O mecanismo exige e exige minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.”(p.91)

Para Clarice, escrever e viver são inseparáveis. Não escrever era morrer. “Penso que terei de pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.”(p.70). Ela diz: “cheguei mesmo à conclusão que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.” Vivendo um drama existencial fáustico, vendeu sua alma para escrever. É como Benedito Nunes formulou para ela, “Narro, logo existo”. Clarice jamais separou vida e literatura, da forma que ela compreendia. Criou seus filhos com a máquina de escrever no colo, e escreveu seus livros, na mesma posição. Eis um instantâneo de Clarice Lispector que se desprende de sua Água-viva.


BIBLIOGRAFIA

BORELLI, Olga. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
GURGEL, Gabriela Lírio. A procura da palavra no escuro – uma análise da criação de uma linguagem na obra de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.
LERNER, Julio. Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo: Via Lettera, 2007.
LISPECTOR, Clarice, Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1995.