sábado, 20 de outubro de 2007

A PROCURA DA PALAVRA TATUADA


O que é isso??? Pergunta-me com olhar maroto a atriz e dançarina Helena Vieira, logo após a exibição do espetáculo de dança contemporânea Maria José, gravado em vídeo.
Por que ela me pergunta isso, me debato na cadeira, incomodada? Me remexo, meu corpo se inquieta, pede para que eu me insurja. Não tão tímida quanto de costume, inicio minha intervenção no debate. Tenho a sensação de que é meu corpo que me impele, me impulsiona a falar. Indignado, contudo, gostaria mesmo de poder se expressar. Explico que não quero traduzir o espetáculo, que já passei por esse momento, que já me libertei da procura de uma palavra tatuada no corpo da cena. Não responderei a sua pergunta, é isso! Eis apenas o relato da minha vivência.

Procuro em vão, no rosto da artista, alguma expressão traduzível. É um rosto que me fita, me vê, sabe da minha existência. O rosto não se furta ao encontro, mas me nega a palavra que insisto, com mal disfarçada ansiedade e angústia, em pedir. O rosto, a face, uma rocha. De nada adianta tentar extrair a leitura dramática que tento arrancar-lhe. Sua negação é eloqüente. Em lugar de palavras uma revolta que transborda no mutismo da face, impelindo meus olhos na direção do corpo. Começo a perceber a narrativa tatuada no corpo da intérprete. Outra linguagem. Palavras em forma de pele, músculos, ossos, matéria viva. Um texto que reconheço, tal qual uma língua (até bem pouco) morta, grego ou latim.

A impaciência inicial, o imperativo intelectual, racional, cultural para a tradução. O irritante o que é isso, o que é isso, o que é isso... marcado compassadamente pelo timer na minha cabeça... único registro sonoro em cena. Tudo isso vai recuando... cedendo espaço...se calando... É a linguagem do corpo que se impõe. Um eloqüente grito, muitas vozes, ou melhor, muitos corpos, uma passeata de feministas, todas em um só corpo nu, gritam compulsivamente, a cada espasmo muscular, que não estão aqui para serem consumidos, expostos em prateleiras, com embalagens desconfortáveis, em sutis discursos que desapropriam a mulher de seu próprio corpo. Maria José se pertence. Tem como construção sua cada um de seus movimentos, mesmo que de forma ora vacilante, ora dolorosa, beirando o abismo. Um corpo dono do seu tempo e do espaço que ocupa. Não é Maria, não é José, é outra coisa. Maria José não é a soma de Maria e José. Maria José pertence a outro gênero. Sem etiquetas, classificações visíveis, categorias reconhecíveis, um gênero que comunica sua existência inventada de forma inegável, desvelada pelo ato artístico. Ato político também. Eu, público, vivencio múltiplas possibilidades do meu corpo atrofiado, que a artística num ato político torna públicas. Meu corpo sai mais potente da experiência artística. Sinto que ocupou mais espaços e aprendeu uma dezena de palavras que somente ele poderá pronunciar. Aonde? No seu espaço político privado. No seu espaço político público. Desvelamento artístico.

*Prêmio Rumos Dança Itaú Cultural/2007

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