segunda-feira, 29 de outubro de 2007

MISSA DO GALO



“Costumes velhos. Às dez horas da noite
toda gente estava nos quartos;
às dez e meia a casa dormia.”


Machado de Assis


É mais uma noite de sábado. Me enfado. Tudo deve transcorrer como de costume, não sei. Porém ouvi dizer que lá fora muitos estarão juntos na igreja, logo depois da meia noite, na tal missa do galo. Ah! Havia me esquecido, é Natal. Mas é que hoje aqui tudo faz parecer mais um sábado como outro qualquer. Vejo no relógio da sala que já são oito horas. Um trepidar me assusta, ferindo o silêncio da noite. Me estremeço toda. É claro, o escrivão já está na sua hora. Vestiu-se no quarto exalando cheiros e vontades, beijou a esposa na testa e partiu marchando pelo assoalho, pisando seus passos resolutos e ritmados pelos corredores. Esse som que machuca a monótona harmonia da noite. Na sala da frente está o jovem primo. Despediu-se dele hoje mais apressado que de costume, talvez. O silêncio segue seus passos até a rua, ocupando novamente seu espaço. E eu também de novo me enfado. Sinto o jovem pesando sobre a poltrona, ele e seus Três Mosqueteiros de Dumas. A sogra do escrivão veio desejar boa noite e lhe pergunta o que fará com tanto tempo à espera da missa do galo. Procuro o relógio, já são dez horas! O jovem lê.
Agora é a mulher de roupão que vem interromper a leitura! O que será que ela quer? Então o jovem e a mulher ensaiam um estranho bailado de coreografias verdadeiramente insuspeitas para mim. Rascunham uma história que não estava prevista para hoje. Movimentos de avanços e recuos pela sala, pelos móveis, pela noite. Sinto uma zonzeira, me atordôo. A dança que não se completa, as línguas que não se falam. As palavras escritas em letras mínimas, o tamanho possível para a caligrafia da mulher... a miopia do jovem... a história que não pôde ser escrita, cheia de rasuras, papel amassado, jogado num canto do tempo. Será que um dia alguém escreverá? Talvez, em intermináveis escritas e rasuras e reescritas, no sempre das reticências... não sei. Durmo um longa noite sem palavras. Acordo às vezes com uma irremediável insônia afásica.
Mas há noites em que eu gostaria de demolir as paredes que ergueram-se dentro de mim a minha revelia. Sei que são elas que me sustentam, me estruturam, me organizam, me fazem ser o que sou. Mas por vezes me sinto tão dividida, esquadrinhada, esquartejada, sei lá. Tão inutilmente dividida. Mas e se um dia, mesmo que por um breve instante, desconstruisse minhas entranhas e levantasse véus levemente invisíveis, ou talvez divisórias falsamente espelhadas? Talvez o milagre, o encontro possível, por um breve momento, aconteceria. Então a revelação, epifania de alegria, consumiria o espaço, as almas em alforria.
A velha viraria menina, correndo serelepe para o quartinho das escravas. Se amontoava no chão frio junto a seus corpos quentes e escuros, com elas rindo e cantarolando, agora não mais à socapa, até que a grande escuridão enfim se achegasse. A mulher se assustaria admirada, extática como o próprio Jesus Cristo na cruz. É seu reflexo por trás do jovem o que ela agora enfim pode ver. Encantada e surpresa com tamanha beleza, seu corpo e rosto a emoldurarem-se na parede, se avizinhando à Cleópatra e às outras tantas mulheres, todas em festa, escandalosamente santas. E o jovem? Ah! O jovem... desceria do cavalo magro de D’Artagnan e, num vendaval de certezas e coragem, tomaria a mulher arrebatada nos braços, divina comunhão, tanta verdade. Também o jovem vizinho e sua sombra que pairavam pesadas, não mais espreitavam portas, ameaçando nossas vontades. Tramava agora um ardil e pulava a janela da mulher, em toda noite de Teatro. E, por fim, o escrivão, era tomado de uma inveja tão santa frente aquela visão de felicidade. Queria ele para si o que via, o paraíso muito antes da mordida, o encontro muito além do pecado. Tomava seu cavalo também, corria a galope para o Teatro e de lá nunca mais voltava. Jogava fora todas as chaves, deixava a porta da rua destrancada, aberta para todo o sempre... Salve! Amém. E livres, não mais acorrentadas, as escravas corriam pela noite da cidade e da corte adentro. Iriam ver, aprender e entender, em que dava afinal a tal Missa do Galo.
Mas para isso tudo eu precisava da mão de Deus, para me animar e me dotar de vontade, pois sou apenas essa casa, assobradada, abandonada e assombrada, pelas lembranças de tudo que vi, aqui onde fico, na Rua do Senado.

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