segunda-feira, 29 de outubro de 2007

POR UM CREDO LITERÁRIO POSSÍVEL


Creio em um narrador não onisciente, nem tão poderoso assim. Padeço de uma fé comovente nas sagradas escrituras. Por isso rezo toda noite escura da alma pelo encontro com esse narrador que crê na literatura como desvelamento de si mesmo. Um narrador que se perturbe com sua própria criação e acolha a surpresa na sua escritura, dialogue com ela e vivencie na carne de suas palavras o mistério do encontro com sua sombra desconhecida. Que a palavra urdida nesse doloroso ofício-sacrifício seja salvadora, transformadora... revelação. E que ao final de sua criação seu criador se perceba cria de sua própria criatura.

Creio nessa narração que se constrói no momento exato da escrita, pré-lógica, corajosa, contingente. Não que ela prescinda da construção ou se entregue a um automatismo romântico mediúnico, mas que se confronte com sua própria face. Que não seja pecado negar a si mesma mais que três vezes. E que ela deságüe em oceanos desconhecidos, praias desertas, recantos paradisíacos ou, quem sabe, continentes inexplorados. Sim, que a literatura seja a herdeira dessa nossa vocação lusa de navegadores a dedicar suas histórias pessoais a descoberta de terras além mar. Que essa viagem se dobre para dentro e para fora, simultaneamente, ao encontro de símbolos, tradições, culturas, misturas, identidades híbridas e em processo, tudo isso que temos em nós mesmos.

Creio na comunhão com esse narrador, que se depara consigo mesmo, que é leitor de si, durante o processo da escrita. Esse, que não teme contradições, incoerências e desconstruções ao longo de sua narrativa e perpassando seu discurso. Que grata surpresa seria forjar do barro uma personagem e, mais adiante, poder acolher algum ensinamento seu. E o encontro com sua multiplicidade de faces, diante da morte desse seu velho conhecido sujeito, possa alimentar sua boca que fala a língua da alteridade. Que esta fala cresça então mais forte e robusta, para que o outro possa ser sentido como mesmo, carne de sua própria carne.

Creio na escritura como salvação, ritualística e purgadora de todos os demônios do eu.

Um comentário:

Amelina Miluiel disse...

Olá, Karem!


Nossa! O seu Credo Literário me fez até chorar! Será que, se eu rezá-lo todas as noites os deuses tornam meu pedido realidade? O.o

Beijos!