segunda-feira, 29 de outubro de 2007

SALVAR-SE NARRANDO


Queremos aqui sondar a economia dos afetos que se apreende das relações entre o eu narrador que conduz a história e os “outros” personagens do conto Feliz Aniversário, de Clarice Lispector. O quanto este eu narrador conhece das razões e sentimentos dos personagens apresentados? Em que lugar (social, espacial e existencial) ele se coloca dentro do conto? Quais são as saídas existenciais que ele irá apresentar para eles? E em que medida ele se emociona e vivencia a história? Sempre trabalharemos com a idéia de um sujeito narrador que não se confunde com o eu autor, mas é antes e também mais um personagem. Seguiremos também com a suposição da existência de um inconsciente do texto, que poderá ser pecebido na desconstrução dos seus discursos.

Desde o início do conto podemos perceber que o eu narrador já se encontra espacialmente na cena da narrativa_“o marido não veio”_ de certa forma se incluindo na festa, se afirmando como mais um personagem. Ele não nega sua inscrição dentro da composição existencial e social que é apresentada como família. Mas percebemos também que somente até certo momento no conto ele é onisciente, conhecendo as razões e sentimentos de quase todos os personagens que se inscrevem dentro destes laços de família, como veremos adiante. Porém, em determinado momento, justamente através dos personagens que lhe parecem de algum modo enigmáticos e insondáveis, aqueles que não estão aparentemente atados pelos laços de família, o narrador viverá uma revelação, terá um momento de epifania.

Sobre as razões dos personagens, este eu narrador onisciente parece conhecer todas, não reservando muito espaço para movimentos e escolhas existenciais. A maioria não recebe sequer um nome, apenas suas posições referenciais dentro da estrutura familiar através de seus laços de parentesco. São sempre seres “em relação a outros”, jamais eles mesmos. Sobre um dos seis filhos da aniversariante se dirá que mora em Olaria, que mandara a mulher. Quase sem possibilidade de nomeação, ele é “o marido” da nora que mora em Olaria e que “não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos”. Sem nome, sem presença física, ele é apresentado como um covarde, que submete seus filhos e esposa, todavia sem romper com a estrutura familiar (“mas mandara a mulher para que nem todos os laços fossem cortados”). Não merece nenhum afeto por parte do eu narrador, que observa as reações de sua esposa: “mostrar que não precisava de nenhum deles”, “com cara fechada”, “emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posiçaõ de ultrajada”. A nora de Olaria e os filhos do casal surgem com o interdito de não mostrar suas identidades, vistas e sentidas como inadequações. Ela tem um “drapeado que disfarça a barriga sem cinta”, não podendo exibir talvez uma liberdade corporal. As duas meninas, “já de peito nascendo”, não podem vivenciar sua sexulidade, sendo infantilizadas por babados. E o filho menino deve assumir uma postura madura demais para sua tenra idade, sentindo o peso de vestes adultas, acovardado com essa missão imposta pelo pai autoritário que não veio.

Outros membros da família vão sendo apresentados pelo eu narrador sempre da mesma forma: quase sempre sem nomes, incomodados, angustiados, oprimidos, não podendo vivenciar suas identidades e com falas que não parecem autênticas. Ficamos curiosos durante grande parte da narrativa por que motivo a estes personagens não é dada a autonomia para recusar a participação neste teatro que é a festa de aniversário da “velha”, da “mãe”, que também só pode ser nomeada pela vizinha. Observamos que todos estão mobilizados em seus papéis dentro desta encenação de família por uma série de adereços, ornamentos e objetos que, envolvendo este corpo social, aparecem como metáforas dos laços opressores de família: “vestido drapeado”, “babados”, “gravata”, “presilha em torno do pescoço”.

O espaço físico também parece dotado de certa substância viva, numa espécie de delírio alucinatório do eu narrador, onde observamos paredes se apertarem, “cadeiras unidas em fila” aprisionando alguns personagem dentro da encenação, “balões sugados pelo teto”, negando espaço ao escape, “encostara as cadeiras na parede”. Todo o espaço físico cerca a mobilidade existencial dos personagens, que não conseguem desatar-se destes laços familiares demasiadamente apertados. O espaço cênico não apresenta assim nenhuma possibilidade de liberdade a seus atores.

Interessante perceber como a dona da casa prepara este espaço da festa como o cenário de um velório. Cabe a esta filha mais velha, enquanto mulher, a preparação deste ritual religioso. Tudo é preparado de forma laboriosa, pois depois do “expediente”, de “todo seu trabalho”, jaz solitário e silencioso o corpo do defunto, que “desde às duas horas estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia”, já apresentando sinais de rigidez cadavérica, “tesa na sala silenciosa”, a espera dos convidados para esta feliz festa de aniversário-velório. A filha não se esquece de borrifar “com um pouco de água de colônia” a velha, para disfarçar o cheiro da decomposição do seu corpo, “seu cheiro de guardado”. Enquanto isso a defunta-aniversariante, na sua “angústia muda” de se ver velada viva, observa o “vôo de uma mosca em torno do bolo”, seu corpo “branco, imaculado” deitado sobre a mesa-caixão.

O ritual de velório-morte é, contudo, subitamente, transmutado numa espécie de sacramento eucarístico. A velha assassina seu próprio corpo, “deu a talhada com punho de assassina”, o corpo desse Cristo cruxificado pela sua própria família, libertando finalmente seu espírito. A libertação é imediatamente sentida pela nora de Ipanema, que segreda “escandalizada” ou agradavelmente surpeendida”, “um pouco horrorizada”, dizendo: “Que força!” E cada facada no corpo-bolo é a afirmação da vida. Seu corpo “caía em ruínas” e era comido por todos “a cada pazinha”. Mas a aniversariante devorava “seu último bocado”, livre e viva. Eis o mistério da comunhão. O eu narrador comunga agora de todos os sentimentos e pensamentos da velha. Revela, então, que ela desprezava sua família, “oh, o desprezo pela vida que falhava, Como?! Como tendo sido tão forte”. Ela cospe no chão, num gesto de desprezo aos fracos e de elogio a vida, ao amor e a alegria.

Entretanto o eu narrador, em vários momentos, parece desconhecer os sentimentos, as razões e sentimentos da aniversariante. Ela aparece como enigma, ausente, “ninguém poderia adivinhar o que ela pensava”, “a aniversariante era apenas o que parecia ser”, pois “parecia oca” e seus “músculos do rosto não a representam mais”. Neste momento observamos o tabu da velhice, quando os personagens se revelam amedrontados com a possibilidade da morte corporificada na idade avançada da aniversariante.

Mas é exatamente neste momento em que o eu narrador se vê igualmente angustiado pela presença da morte, que ele pede ajuda: E Cordélia? E não a acha, à princípio, porque ela efetivamente não se inscreve neste espaço existencial. Cordélia está “ausente”, “sorrindo”, “suportando sozinha o seu segredo”. Está livre Cordélia, num universo paralelo e “desperta esbaforida”, apenas tangenciando este espaço-prisão por um breve “relance”. Cordélia pertence ao mundo dos vivos. É a “infeliz nora que sem remédio, amava talvez pela última vez”. E neste instante vem a revelação epifânica, “porque a verdade era um relance”, quando a velha com “seu punho mudo e severo sobre a mesa dizia”: “É preciso que se saiba que a vida é curta. Que a vida é curta. Que a vida é curta.”

Enfim, a velha se transfigurara num oráculo para o eu narrador e para Cordélia. “Seu mistério era a morte”. Decifra-me ou te devoro. E Cordélia sobrevivera. Decifrara na “velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante”, abandonando seu marido para viver seu amor, rompendo com violência este laço familiar, “enfim, agarrar a sua verdadeira chance de viver”.

Um comentário:

Margareth Bravo disse...

Excelentes observações e poder de síntese! Desatar os nós dos "Laços de família" não é para qualquer um! Parabéns!