segunda-feira, 29 de outubro de 2007

LITERATURA DE AUTO-AJUDA E O BOOM BIOGRÁFICO


Livros. Falaremos aqui de dois fenômenos editoriais de vendas nas últimas décadas: a literatura de auto-ajuda e o boom biográfico. Entretanto, queremos questionar a premissa de que estamos realmente tratando de livros. Não na qualidade de objetos empíricos e dotados de concretude física, que certamente o são, mas da espécie de matéria espiritual que representam. Passaremos, então, a uma reflexão e uma investigação sobre as formas que se dão estes dois fenômenos sociológicos de consumo no âmbito da cultura de massa.

Fazendo uma apropriação de alguns conceitos da teoria sociológica dos sistemas de Niklas Luhmann que encontram ressonância significativa nos estudos de literatura, como propõe Heidrun Olinto, tentaremos pensar estes dois fenômenos fazendo uma articulação entre os sistemas simbólicos suscitados por estas literaturas e os demais atores sociais acionados neste sistema social em que a literatura circula.

A proposta inicial consiste em inventariar alguns títulos de livros mais recentes e outros conceitos-chaves com que estas literaturas trabalham, numa tentativa de relacionar os campos semânticos em que estes circulam com outros atores sociais empíricos por onde transitam ou são consumidas estas mercadorias, livros a priori. É visível que estamos trabalhando com a categoria do leitor-receptor-consumidor transformado em co-produtor de sentido de uma nova unidade fundante: o texto-contexto.

Uma primeira percepção é a da recorrência de títulos que ora remetem ao universo da ciência, da farmacologia ora ao da magia, do curandeirismo. Temos “Gotas de sabedoria”, “Pílulas de Felicidade”, “Diário de um Mago”, “O Alquimista”. Na estilística há uma recorrência a regras, métodos, leis, que sugerem outras aproximações, desta vez com fórmulas medicinais, receitas de poções, bulas de remédios e leis da física ou da química. Já no segmento das biografias, podemos refletir sobre o caráter evangelizante da literatura. Passando pelas histórias de vidas célebres, há também a história da vida da prostituta Bruna Surfistinha e as inúmeras histórias que contam a vida de santos ou homens “santos” (lamas, gurus, mestres espirituais, etc.). Alguns destes são de alguma forma incensados pela mídia a uma categoria sacralizada. O discurso é muitas vezes o catequético, como sugerem os títulos “Peça e Será Atendido”, “Você e Mais Capaz do Que Pensa” e “O poder do agora”, só para citar a última lista dos dez mais vendidos pelo jornal Folha de São Paulo. Na forma com que uma voz superior se dirige ao leitor, ouvimos o Deus-mercado falando com seu discípulo-consumidor. Em vários destes discursos a mesma doutrina de que o indivíduo pode resolver tudo por si mesmo, com diversas roupagens: “pensamento positivo”, “lei da atração”, “lenda pessoal”. A diversificação e a distinção enfática ds temáticas, servem apenas para organizar e classificar os consumidores, padronizando-os, segundo Adorno em seu ainda atualíssimo ensaio “Indústria Cultural”. Produtos de massa dirigidos a nichos de mercado que aparentemente conferem uma percepção de identidade diferenciada a cada segmento. Há os pseudo-filosóficos, os pseudo-místicos, os pseudo-esportistas, sendo que efetivamente a grande parte destes leitores-consumidores não possuem contato algum com nenhuma destas tradições, quer seja através de seus textos, comunidades ou práticas, mas simplesmente através da facilitação da mídia, que dilui e homogeiniza esses discursos. Efeito curioso é a produção de uma estranha sensação de pertencimento a uma coletividade virtual, esta comunidade de indivíduos unidos virtualmente pela leitura de best sellers, anônimos, se irmanando por esta estranha construção de uma identidade negativa _ leitores-de-auto-ajuda-e-de-biografias-de-celebridades anônimos.

Os templos de consumo vão das tradicionais livrarias, mas sobretudo e, curiosamente, em prateleiras-santuários dispostas em forma de altar, às mega-drogarias, mega-supermercados e lojas de conveniência AM/PM. Estes são os locais de distribuição desta espécie de livros. Talvez possamos refletir melhor sobre em que matéria espiritual se transformaram estes objetos empíricos, se pensarmos largamente na forma com que são consumidos. Curioso pensar que hoje, dificilmente podemos encontrar templos ou espaços sagrados abertos na madrugada, ao contrário do que observávamos em um passado não tão distante, quando o acesso ao curandeiro, ao feiticeiro, ao sacerdote, não conhecia horário comercial. Na madrugada contemporânea, quando os fantasmas dos loucos e dos insones tornam a assombrar, podemos ver este homem caminhando solitário, aprisionado em sua doutrina hiperindividualista. Seu slogan é o make yourself e seu destino, os self-services. Na próxima loja de conveniência ou mega-farmácia AM/PM, o homem pensa encontrar o bálsamo para sua alma.

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